Título: Na Amazônia, cenário de Vidas Secas
Autor: Liège Albuquerque
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/10/2005, Nacional, p. A10

O cenário das famílias tomando carona em um caminhão lembra o dos retirantes do Nordeste. Mas o filete de rio ao fundo dá pistas de que a paisagem desvirtuada fica no Amazonas.

Uma vez por semana, há cerca de 20 dias, a prefeitura de Manaquiri, a 65 quilômetros de Manaus, 'faz o que pode', segundo os moradores: aluga caminhões que percorrem cada uma das 35 comunidades do município, oferecendo à população carona até a zona central.

Com o pouco dinheiro que lhes resta, já que a agricultura e a pesca estão falidas, compram alimentos. E as crianças reclamam de dores de barriga.

'A gente não tem dinheiro para comprar água mineral, vem aqui em Manaquiri para comprar arroz e feijão, mas não tem como comprar água, que é muito cara. Acho que essa criançada toda vai adoecer', desabafa a aposentada Rosa da Silva Gomes, de 60 anos, 12 netos.

Na comunidade Limão, onde Rosa mora, a água límpida do igarapé transformou-se num fio de lama. E é essa água que vai para os filtros de barro.

A comunidade de 600 pessoas, a 12 quilômetros do centro de Manaquiri, em estrada de terra, com buracos e lamaçal, é um exemplo do quadro desolador hoje no Amazonas. Há, em todo o Estado, 167 mil pessoas isoladas, em 914 comunidades, nos 21 municípios mais castigados pela estiagem.

CALAMIDADE

Em Manaquiri, já chegou a notícia do estado de calamidade pública, sofrido na pele pelos 12 mil habitantes. Mas, até ontem, nenhum sinal de ajuda. Explicar que 'o fenômeno está ligado às queimadas e pode estar associado ao aquecimento da superfície do oceano Atlântico' é 'falar grego' para a população.

'A gente quer saber é quando vai chegar essa ajuda, pelo menos de água potável. Sabemos que em um mês a seca vai terminar, mas gente a pode morrer até lá. A gente tem medo dos meninos adoecerem todos de uma vez e médico aqui, só na sede do município, longe das comunidades', reclama o aposentado Francisco Soares de Freitas, de 58 anos.

Normalmente, as pessoas das comunidades se deslocam de barco, pelo Rio Manaquiri, afluente do Solimões, para comprar mantimentos na sede do município. É mais rápido, já que cada um tem a sua canoa, mas ninguém tem carro. Desde setembro, o Rio e Lago Jaraqui, no centro do município, começaram a secar muito rápido. Hoje são cemitérios de peixes.

'Eu vivi uma grande seca em 1963 ou 67, não lembro, e outra em 1998, mas essa é pior porque não estão ajudando a gente até agora', reclama Francisco de Oliveira, de 70 anos, agricultor que mora na comunidade de Andiroba, a cerca de 17 quilômetros do centro de Manaquiri.

ESCOLAS

Boa parte das comunidades da região tem escolas, todas fechadas desde o fim do mês passado. 'Não temos condições de dar aula sem água para as crianças beberem', explica a professora Maria de Lourdes Machado, de 35 anos, da comunidade Canaã. 'Tem escola, como a da comunidade Limão, que as crianças teriam de passar por dentro do lamaçal, já que a ponte quebrou.' Na beira do Rio Manaquiri, Jumar Lima Araújo, de 12 anos, tem um arpão nas mãos.

Espeta arraias encalhadas na beira do córrego lamacento. 'Eu já fui mordido por uma delas, dói muito. Se eu conseguir matar algumas, quando o rio voltar, vai ter menos.'

Esse agora é seu único passatempo. 'Feriado de dia da criança ou Nossa Senhora Aparecida não faz a menor diferença, não tem aula e nem presente mesmo.'