Título: Desastre anunciado
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Fonte: O Estado de São Paulo, 12/10/2005, Notas e Informações, p. A3

O Brasil levou anos para se tornar o maior exportador mundial de carne, em volume, e pode perder essa posição em pouco tempo se o governo continuar arriscando centenas de milhões de dólares, talvez bilhões, para economizar algumas dezenas de milhões de reais. O aparecimento de um novo foco de aftosa, confirmado anteontem pelo Ministério da Agricultura, foi um desastre anunciado. Com o gasto de apenas R$ 553,4 mil neste ano, 1,57% do valor liberado para o combate à doença, o risco era evidente, num país com um rebanho bovino de quase 200 milhões de cabeças distribuídas num enorme território - como cansamos de advertir em vários editoriais, às vezes comentando advertências do próprio ministro Roberto Rodrigues. Só não se sabia o endereço do novo surto - uma fazenda em Eldorado, Mato Grosso do Sul, a 30 quilômetros da fronteira com o Paraguai.

Rússia e Chile foram os primeiros importadores a reagir, cerca de 24 horas depois de informada oficialmente a existência do foco, seguidos, horas depois, pela União Européia (UE). A Rússia, maior compradora de carne bovina, importou neste ano, até setembro, US$ 406,1 milhões, 21% do valor total de US$ 1,93 bilhão faturado pelo Brasil.

Informou-se mais tarde, ainda extra-oficialmente, que só as importações de carnes bovina, suína e de frango de Mato Grosso do Sul tinham sido suspensas pelo governo russo. A UE suspendeu compras de Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná.

Quando a informação sobre a doença foi divulgada, na terça-feira, vários exportadores e líderes do agronegócio brasileiro estavam em Colônia, na Alemanha, participando da Anuga, a maior feira internacional de alimentos. Nada mais normal, quando se quer exportar. Incomum é ter de explicar aos clientes, numa feira de negócios, notícias que prejudicam a imagem de seriedade comercial que se tenta criar.

Ninguém pode ser grande no mercado internacional sem o diploma de confiabilidade. E não há confiabilidade que resista ao desleixo na política de sanidade animal e vegetal. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sabe faturar politicamente com os números favoráveis do comércio exterior. Mas seu governo continua incapaz de realizar programas consistentes de abertura de mercados, de competitividade e de consolidação da marca Brasil.

O governo deveria aplicar anualmente uns R$ 120 milhões em programas de sanidade animal, segundo o ex-ministro da Agricultura e atual presidente da Associação Brasileira da Indústria Exportadora de Carne (Abiec), Marcus Vinicius Pratini de Moraes. Mas neste ano foram liberados apenas R$ 35,3 milhões, porque a maior parte do dinheiro foi contingenciada. O governo ainda poderia liberar uns R$ 60 milhões, segundo fontes de Brasília.

Do dinheiro liberado foram gastos efetivamente R$ 553,4 mil. Nenhum centavo foi para Mato Grosso do Sul, segundo o secretário de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura, Gabriel Maciel. A sanidade animal, diga-se de passagem, não é uma exceção. No governo Lula, a única coisa que não é contingenciada é discurso do presidente...

Aparentemente, houve falhas tanto na liberação quanto na aplicação das verbas. No Ministério da Agricultura, denuncia-se não só a falta de verbas, mas também a escassez de pessoal para a execução da política. O ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, apontou o combate à aftosa como principal tarefa do novo secretário de Defesa Agropecuária. Em discurso na cerimônia de posse do novo auxiliar, o ministro lembrou a meta de erradicação da doença até o fim de 2006. "Minha mensagem tem sido sempre esta: ou a pecuária brasileira acaba com a aftosa, ou a aftosa acaba com a pecuária brasileira", disse Rodrigues.

O combate à doença havia avançado consideravelmente desde os anos 90. Houve um trabalho intenso em vários Estados. O governo federal reforçou esse trabalho. Mas o congelamento indiscriminado de verbas, sem critérios de prioridade, prejudicou o combate à aftosa nos últimos dois anos.

Consumado o desastre, o governo cuidou de isolar a região onde se localizou o novo surto. Mas precisará negociar com os governos de países compradores para tentar diminuir as perdas comerciais. Terá de gastar energia não para ganhar o jogo, mas para compensar um gol contra. O presidente da República, amante de futebol, deveria meditar sobre isso.