Título: Uma nova abertura da economia brasileira?
Autor: Marcos Sawaya Jank
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/10/2005, Espaço Aberto, p. A2

Foi lamentável o vazamento para a imprensa de um documento do Ministério da Fazenda que propõe uma nova abertura comercial da economia brasileira no âmbito das negociações da Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC). Dezenas de documentos como esse têm sido produzidos por diferentes órgãos do governo, pelo setor privado e por institutos de pesquisa. O documento era apenas uma dessas propostas que, por sua estreita ligação com as negociações correntes, deveriam ser mantidas em sigilo absoluto pelo governo. O texto apenas discute os limites das concessões que deverão ser feitas em bens manufaturados, pelo Brasil, em troca de concessões recíprocas por parte de nossos parceiros em áreas como agricultura, antidumping e outras. Negociações são jogos tipicamente mercantilistas, em que os países costumam defender a abertura dos setores em que têm vantagens comparativas e a proteção nos que não têm.

Sem entrar nos detalhes deste e de outros documentos que estarão sendo discutidos em Brasília, nesta semana, cabe abordar algumas questões conceituais: qual o impacto de uma nova abertura comercial sobre a economia e os diferentes agentes econômicos? Como ela deveria ser realizada? A abertura produziria uma concentração nas indústrias intensivas em recursos naturais - agronegócio, mineração, siderurgia -, em detrimento das indústrias intensivas em trabalho e capital? Ou mesmo uma "desindustrialização prematura" do País, como querem ver os mais catastrofistas?

Há mais de 200 anos a Teoria Econômica mostra que a abertura comercial traz ganhos líquidos para a sociedade, ainda que o exercício pleno das vantagens comparativas possa prejudicar empresas e trabalhadores dos setores menos eficientes. A redução da proteção aumenta a concorrência, beneficiando o conjunto dos consumidores, que, infelizmente, tendem a ser esquecidos pelos negociadores de plantão. É curioso ver 150 negociadores esgotando as suas energias para defender meia dúzia de setores pouco eficientes dos seus respectivos países - na maioria das vezes dominados por lobbies arcaicos ou por empresas multinacionais -, afirmando que tais setores resumem o "interesse nacional", enquanto milhões de consumidores são literalmente ignorados.

Ocorre que é preciso lembrar que não só os consumidores ganham com a abertura. Ela também beneficia as indústrias que dependem de insumos e bens de capital importados para se modernizar. Importar mais é fundamental para quem quer exportar mais e melhor. No caso do Brasil, estudos mostram que a produtividade dos setores que transacionam com o exterior cresceu o dobro vis-à-vis os que não transacionam.

Todos os países mais eficientes do mundo são hoje economias abertas, que se posicionam ao mesmo tempo na liderança das exportações e das importações mundiais. Contudo, aqui, no Brasil, ainda predomina uma mentalidade autárquica anacrônica oriunda de 40 anos de "substituição de importações", baseada na idéia de que é preciso produzir de tudo, que as exportações são boas e as importações, ruins ou, pior, que indústrias fartamente protegidas por tarifas e subsídios, durante meio século, hoje ainda seriam "nascentes".

Não vejo por que evitar uma abertura recíproca que reduziria as tarifas de importação dos membros da OMC durante longos dez anos, com inúmeras exceções e flexibilidades para os países como o Brasil. A tarifa média aplicada pelo Brasil sobre bens manufaturados (13%) é uma das mais altas do mundo, ocupando o 95º lugar no ranking ascendente das tarifas de 140 países publicado pela OMC. A tarifa média brasileira só é superada pela da Índia, dos países árabes e de países extremamente pobres da África e Ásia! Vale ainda lembrar que o corte que está sendo proposto parte da tarifa consolidada na Organização (máxima), que, no caso do Brasil, é 2,5 vezes maior que a tarifa hoje aplicada. Muitos produtos nem sequer vão ter suas tarifas cortadas e, na maioria dos demais, os cortes provavelmente só serão observados a partir de 2013.

Ora, se não formos capazes de aceitar as condições mais suaves de abertura que estão sendo propostas na Rodada de Doha, jamais seremos capazes de assinar acordos de livre comércio muito mais liberalizantes com os EUA, a União Européia e outras grandes economias. A abertura comercial por meio da OMC é, sem dúvida, a mais abrangente, a que tem as melhores barganhas sobre a mesa e, também, a menos agressiva em relação aos nossos "interesses" defensivos.

E não é só isso. Estou convencido de que o melhor resultado que países como o Brasil deveriam esperar de um processo de abertura dessa natureza definitivamente não é a ampliação do comércio, mas, sim, a indução de mudanças institucionais e reformas estruturais na política pública. Proteção por meio de tarifas elevadas, salvaguardas e antidumping não resolvem a competitividade de ninguém. Reformas domésticas, sim. Nossos verdadeiros problemas estão nos fundamentos da macroeconomia (juros e impostos elevados, volatilidade do câmbio real), nas deficiências de logística, na lentidão da Justiça, no baixo nível educacional e nos custos absurdos da nossa legislação trabalhista.

É curioso notar que o pleito do setor industrial em favor da imposição imediata de salvaguardas contra a entrada de produtos chineses se baseia, além dos desajustes macroeconômicos, no desrespeito a padrões ambientais, trabalhistas e de propriedade intelectual pela China. O Brasil sempre rejeitou a discussão multilateral desses temas, temendo que a sua inclusão nos acordos gerasse novas medidas protecionistas. Só que a forma como a China tem operado joga países como o Brasil para o outro lado. A sinalização de uma abertura lenta e parcial obrigará o País a buscar soluções concretas para o alto custo de capital, para uma legislação trabalhista que está expulsando para a Ásia as nossas indústrias intensivas em trabalho e para as incertezas do atual sistema jurisdicional. Se não formos capazes de assumi-la, a única saída será ficar assistindo aos navios passando ao largo da nossa costa, saindo e chegando de países que souberam encarar a globalização, nas centenas de acordos regionais e bilaterais que estão explodindo pelo mundo.

A solução para o Brasil não é mais proteção, e sim reformas domésticas e regras multilaterais que permitam o avanço justo da competição.