Título: Mosquitos, aves e outros dilemas
Autor: Laura Greenhalgh
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/10/2005, Aliás, p. J3

Fazer ciência é razão de vida para o médico, parasitologista e geneticista Luiz Hildebrando Pereira da Silva. Mais que isso: é a razão de vida que muda a própria vida. Não fosse assim, o aclamado cientista paulista - nasceu na cidade de Santos, há 77 anos - poderia desfrutar dos títulos acadêmicos e condecorações que juntou ao longo da bem-sucedida carreira, para viver de notoriedade. Não lhe faltariam convites para se exibir como grande autoridade mundial no estudo dos parasitas que provocam a malária. Luiz Hildebrando, no entanto, fez a opção preferencial pelo pé na estrada. Formado pela Faculdade de Medicina da USP, onde chegou à livre-docência, e aposentado como diretor de pesquisas do Instituto Pasteur, na França, no ano de 1996, decidiu voltar ao Brasil para iniciar um trabalho de pesquisa e intervenção em saúde pública na região amazônica. Não pesou na decisão nem o fato de ter sido perseguido pelo regime militar nos anos 60. O professor voltou sem mágoas e com vontade de trabalhar. Hoje dirige duas instituições que já são referência internacional, o Centro de Pesquisas em Medicina Tropical (Cepem) e o Instituto de Patologias Tropicais, ambas em Rondônia. Sua batalha contra as endemias, iniciada há meio século, continua implacável.

A distância e a falta dos confortos da metrópole não o incomodam. De seu escritório em Porto Velho, está ligadíssimo nos vírus e bactérias que rondam o planeta. Sua cabeça é um radar. Nesta entrevista exclusiva, fala de febre aftosa, gripe aviária, de novas contaminações e explica por que as endemias voltam a preocupar o Brasil - particularmente na região do Amazonas, que vem amargando uma brava estiagem.

Luiz Hildebrando hoje lidera uma equipe científica que trabalha ao longo da calha do Rio Madeira, não só fazendo pesquisa, mas cuidando da saúde dos ribeirinhos. É assim que constrói uma grande convicção: a de que o Brasil precisa de um projeto de desenvolvimento de longo prazo. Chega de imediatismos.

Por que mais malária?

Isso está relacionado aos fluxos migratórios. É o caso das populações expulsas do campo, por falta de trabalho, que vêm formar as periferias dos centros urbanos. No ano passado fizemos um balanço aqui na região. Havia meia dúzia de municípios do norte de Rondônia que apresentava uma explosão de casos. Ao analisar esses lugares, verificamos que cerca de 120 madeireiras recrutavam trabalhadores que vinham do sul do Estado. Era isso. Em 1996, tínhamos em torno de 50 mil casos em Rondônia. Este ano já passamos dos 100 mil, de janeiro a agosto. Outro caso grave é Manaus. A idéia de que tem emprego sobrando por lá atrai uma imigração maciça para a capital do Estado. Tem gente vindo até do Pará e do Maranhão. Incham a periferia, degrada-se o meio ambiente. Os igarapés dos pequenos rios são bloqueados e há a proliferação do mosquito transmissor. E o que dizer das represas para a piscicultura? Águas paradas.

Quando essa situação em Manaus começou a ser notada?

Há três, quatro anos. Hoje os serviços de saúde têm dificuldade de controlar a contaminação, pois lidam com populações que vieram de regiões onde há reservatórios da malária.

Como assim?

A malária é doença que não tem reservatório animal, ela é exclusivamente humana. Não é como a febre amarela, que tem reservatório no macaco selvagem e é transmitida pelo mosquito da floresta. Pois bem, as populações antigas de Manaus, populações ribeirinhas, são grupos humanos esparsos. É gente que vem sendo infectada por malária há décadas, e assim adquiriu certa imunidade. São doentes assintomáticos. Isso explica por que na construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré houve explosão da doença. Porque por lá chegaram 20 mil trabalhadores originários de áreas sem malária, como das Antilhas e mesmo da Europa, e adoeceram em contato com a população antiga. A contaminação continua se dando da mesma forma.

Há o risco de novas explosões da doença?

Sim, a partir da construção das barragens no Rio Madeira, para erguer hidrelétricas. Essas obras prevêem a chegada de muitos trabalhadores. Nesse tipo de empreendimento, os trabalhadores moram em acampamentos protegidos, mas atraem uma massa secundária de pessoas, gente que vem para o comércio, para o ramo das diversões, para a prostituição...

É uma situação incontornável...

Mas controlável. Estamos realizando estudos na calha do Rio Madeira, numa região que vai de Porto Velho até 150, 200 quilômetros ao sul, com a população ribeirinha. Conseguimos fazer uma parceria com o Ministério da Saúde e tratar essa massa de assintomáticos para ver se é possível impedir a explosão de malária com a chegada dos não-imunes.

Como é que se detecta um assintomático?

Exame de sangue. Pode ser feito por microscopia, mas utilizamos métodos moleculares, mais avançados. Teremos uma área de controle que vai quase até a fronteira com a Bolívia, ao longo da calha do rio.

Como tratar os assintomáticos?

Pelo método clássico. A malária pelo Plasmodium vivax, que é a prevalente no Brasil, controla-se com cloroquina, droga inventada nos anos 40 pelos alemães e, depois da guerra, introduzida em países europeus. Ela erradicou a doença em toda a bacia mediterrânea. A cloroquina também foi usada no Brasil nos anos 50, mas não serve para atacar a malária pelo Plasmodium falciparum, mais rara entre nós. Com a cloroquina e o inseticida DDT eliminou-se a malária na faixa litorânea, na zona do São Francisco e na bacia do Paraná, décadas atrás. Mas sobrou a Amazônia, região de acesso mais difícil.

É razoável dizer que as doenças endêmicas estão aumentando?

Algumas. A leishmaniose visceral está sofrendo um processo de urbanização. Até no Rio de Janeiro vem sendo encontrada. Aliás, não se sabe se há uma urbanização da leishmaniose ou uma ruralização das cidades, tão críticas são as condições de vida nas periferias urbanas. São situações que decorrem da promiscuidade encontrada nesses lugares.

Promiscuidade como?

Periferias alimentam a transmissão direta de doenças como gripe, tuberculose, meningite. Hoje há um aumento da tuberculose em função da falta de higiene e saneamento. Isso também se verifica em relação à hanseníase em certas regiões da Amazônia. Quanto à febre amarela, não há aumento porque a vacinação tem sido mais intensa. E doenças emergentes surgem com a penetração do homem em novos ambientes. É o caso das hantaviroses, transmitidas por ratos, que infectam humanos. O Instituto Evandro Chagas, no Pará, já isolou cerca de 180 vírus que podem infectar o homem e demonstrou, em mais de 50 deles, que realmente infectam. Há quadros de agravamento...

Como a dengue?

Sim. A dengue tem apresentado agravamento da sua sintomatologia com o passar do tempo. Quando existe a transmissão acelerada de uma doença, podem ocorrer mutações no vírus, e isso leva a infecções mais sérias. Por isso já temos encontrado, em algumas regiões, a dengue com sintomatologia neurológica.

Por que hoje, diante de uma doença nãoidentificada,logoosmédicosfalam em virose?

No Brasil, métodos de diagnóstico para a identificação de agentes etiológicos virais são precários. Ainda dependemos de produtos importados até para diagnosticar hepatite. Em nosso instituto, temos uma unidade de atendimento para doenças infecciosas febris. Recebemos no ano passado 25 mil pessoas que suspeitavam ter malária. Dessas, apenas 9 mil confirmaram diagnóstico. As outras 16 mil provavelmente tinham infecções de origem viral. Algumas viroses são identificadas clinicamente pelos médicos. Outras, não. São muitas as viroses que hoje circulam na região amazônica, e podemos esperar por novos vírus. Eles virão. Fazem parte da nossa aventura na Terra, um planeta que decidimos colonizar inteiramente, alcançando todas as áreas ecológicas.

O senhor não acha que a consciência ecológica avançou nos últimos anos?

Entre intelectuais, talvez. Aqui em Rondônia, nos municípios que abrigam as 120 madeireiras, o prognóstico é de extermínio da floresta em poucos anos. Há uma convergência perversa de interesses. O pessoal do MST apóia os invasores. Os madeireiros precisam dos invasores, pois serão os trabalhadores mal pagos para cortar árvores. Os prefeitos estão de acordo porque fazem negócios com o pessoal das madeireiras. E assim por diante. De onde vêm os que atacam as florestas? Vêm do desemprego provocado pelo agronegócio. A soja exige superfícies imensas, de alta mecanização, e os pequenos agricultores são forçados a abandonar suas terras para fazer o que é possível, ou seja, derrubar floresta para os madeireiros. Quando a floresta termina, eles se mudam, vão derrubar em outro lugar. E a pecuária? Em 2004 esta região exportou um quinto da produção de carne do País. Só de Rondônia saíram 370 mil toneladas! Pois a pecuária significa desmatamento de grandes extensões para os bois ficarem passeando de um lado para outro. Pecuária não recruta mão-de-obra. Quem dá emprego hoje na Amazônia é madeireiro que derruba floresta para fazer pasto.

Ou seja, nesse caso o empregador é o predador.

Exatamente. O único empregador é o predador.

Esta semana lidamos com a notícia denovosfocosdefebreaftosa.Adona da fazenda onde a contaminação foi detectada garante que vacinou o gado dentro dos critérios exigidos.

Acredito nela. Mas, curioso, o que acontece na pecuária acontece em relação à promiscuidade das periferias urbanas. Como é o gado na Europa? Ele é estabulado em pequenas propriedades. Como é aqui? O rebanho fica solto em grandes extensões. Cria-se o risco de promiscuidade entre os animais. Sabemos que as nossas fronteiras são imensamente permeáveis. Tem gado que passa de um lado para outro, é impossível controlar os territórios de pastagem.Você sabe que a lhama é sensível à aftosa?

Uma lhama pode ter cruzado a fronteira?

Sabe-se lá... Há muita vigilância em relação à fronteira com a Bolívia, mas como controlar? Alguns animais silvestres são portadores da doença. Nossa mentalidade em relação à defesa sanitária é atrasada. Existe lugar mais propício à transmissão pessoa a pessoa do que o setor de doenças infectocontagiosas do Hospital das Clínicas em São Paulo? Fizeram um monstro que reúne todos os ambulatórios, é a racionalidade do diabo! Uma concentração inacreditável de doentes, milhares de pessoas de diferentes procedências e todas as origens. Se aparecer o vírus Sars em São Paulo, não tenha dúvida: ali vai ser um centro difusor da contaminação. Se nem as nossas elites sabem fazer o controle pela compartimentação, o que dizer dos pecuaristas ou dos madeireiros?

E as aglomerações humanas das periferias?

Pois é, não temos um programa racional de fixação do homem. Tanto na área urbana quanto na rural. De qualquer forma, tem sido mais interessante morar numa periferia urbana do que no meio rural. Na periferia, você tem a escola, o posto de saúde. No meio rural, as populações que restam estão desassistidas. Podem me chamar de conservador, mas venho da escola de saúde pública de Samuel Pessoa, cuja obra mais importante foi desenvolver a higiene rural. O que é isso? É fixar o homem na região, transformando sua vida de acordo com padrões aceitáveis para a sua permanência.

Hoje se fala muito em mudanças climáticasdecorrentesdoaquecimento global. Isso nos leva à 'era dos mosquitos'?

Não estou convencido da relação entre uma coisa e outra. Existe alguma associação de novos focos de doenças com o efeito estufa. Veja as queimadas na Amazônia. Têm a ver com processos de intoxicação da população, além de ocasionarem perturbações climáticas locais. Tenho olhado muito para o vírus Oeste do Nilo (West Nile virus), que veio da África e infectou os EUA. Houve, há dois anos, uma epidemia desse vírus em Nova York e Boston, transmitida por um mosquito banal, o nosso pernilongo. A contaminação provoca quadro infeccioso, que pode se generalizar. Pois o problema já chegou à Flórida e deve nos alcançar, seguramente através das aves migratórias.

Há previsões alarmantes em relaçãoà gripeaviária.Em São Paulo,as pessoasjá estãocomeçando aestocar caixinhas de um antiviral...

Não adianta. O que adianta é pôr já os virologistas brasileiros em contato com centros internacionais. Veja bem: quando se trata de vírus, vacina é importante. Não vai ser com comprimidos de antiviral que se vai conter uma epidemia com a força da que está sendo prevista. A meu ver, terá de se pensar em situações de isolamento e quarentenas, como já foram experimentadas em países como a Coréia e o Vietnã. Bloqueio e controle da transmissão serão fundamentais.

O senhor enfatiza a necessidade de desenvolver métodos de diagnóstico,controle,saneamento,enfim,métodos que melhorem o perfil da saúde pública. Isso vem sendo feito?

O governo tem demonstrado boas intenções com a saúde pública, mas esse não é um problema só relacionado aos governos. Carências têm a ver com uma situação estrutural da sociedade. Na minha opinião, o presidente Lula é muito preocupado com as elites. Bobagem. Deveria se preocupar com as camadas médias, que mantêm interesses e privilégios responsáveis pela paralisia social em que vivemos.Voltando a um tema já abordado: não sou contra o agronegócio, mas ele não deveria ser exclusivamente negócio, teria de trazer um projeto de desenvolvimento social. Fala-se em estímulo à agricultura familiar. Porém, o que vem sendo feito é pouco se comparado ao estímulo dado à produção agrícola exportadora.

Ex-militante de esquerda e homem afinadocomosideaissocialistas,osenhor se frustrou com o PT no poder?

Não vou isolar o caso brasileiro. O fim dos regimes comunistas no Leste Europeu, o esfacelamento da União Soviética, tudo isso nos levou a uma situação de ceticismo em relação aos benefícios que o socialismo poderia introduzir nas economias de mercado. Lidaremos com esse ceticismo por longo tempo. Certamente a minha geração não verá as soluções para tornar a vida mais justa, mais equilibrada. Mas também não é preciso fazer uma revolução socialista para resolver inúmeros problemas. Seguramente falta um projeto de longo prazo para o Brasil. E falta uma classe dirigente - não só uma classe dominante, como Gramsci soube tão bem diferenciar.

Obalançodasuaexperiênciacorajosa em Rondônia.

Ocupo-me com o que sei fazer e acho que faço mais ou menos bem. Há oito anos trabalhávamos aqui com apenas um doutor. Hoje somos um grupo de 12 doutores e vários mestres. Desenvolvemos planos em biotecnologia para a produção de fármacos e métodos diagnósticos, enfim, creio que fizemos as opções corretas. Agora, será que essa experiência é corajosa, como você diz? Corajosa tem sido a minha família. Desde que vim para cá, deixei de funcionar bem como pai, como avô...

O senhor está perto da vacina contra a malária?

É uma grande esperança, mas para o Brasil não vai surtir o efeito desejado. Pesquisas vão bem em relação à malária pelo Plasmodium falciparum, que não é a recorrente em nosso país. Uma vacina para esse tipo será fundamental na África. Já a malária da Amazônia, do tipo Vivax, pode ser controlada sem vacina, contendo-se a intensidade da transmissão. Como chegar a esse controle? Com gestão de saúde pública.