Título: Vítima da violência, Jd. Ângela está dividido
Autor: Marcelo Godoy
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/10/2005, Metrópole, p. C3

Discutir desarmamento e proibição de armas de fogo pode ser perigoso no Jardim Ângela. Basta uma palavra mal interpretada para alguém ser cobrado pelo que disse. O bairro da zona sul de São Paulo foi o líder durante anos nas estatísticas de homicídios da cidade, quando chegava a registrar um assassinato por dia. Mas também foi o pioneiro na mobilização pelo desarmamento. É fácil encontrar entre os moradores quem teve um conhecido, amigo ou parente assassinado. As principais lideranças do lugar pregam o 'sim' no referendo do próximo domingo, mas enfrentam resistências de moradores e comerciantes, que temem uma ação mais desenvolta da criminalidade.

Faz dez anos que o Jardim Ângela convive com campanhas pela paz e pelo desarmamento. A última delas começou em julho e mirou um público específico: as crianças. Em dois meses, 497 revólveres e pistolas de brinquedo, a maioria semelhante às verdadeiras, foram entregues na Paróquia Santos Mártires. Em troca, a criança recebia outro brinquedo, como um jogo, livros e carrinhos. 'Muitos traziam a arma quebrada', disse o estudante de Direito Fábio Vicente de Souza, de 25 anos, que trabalhava no Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca).

Por trás dessas campanhas, há uma figura muito conhecida na região: padre Jaime Crowe, responsável pela paróquia há 18 anos. Crowe é o maior defensor do 'sim'. 'As armas são instrumentos de morte.' Quando a luta contra a violência se transformou em passeatas, em 1996, o Ângela não tinha nenhuma das quatro bases comunitárias montadas pela Polícia Militar nem a Guarda Civil construíra a sua. A região tinha 6 postos de saúde e agora tem 26. 'No começo me disseram que era perigoso', conta o padre. Os criminosos, porém, nunca causaram nenhum transtorno para as caminhadas patrocinadas pela paróquia. Mas o medo persiste no Jardim Ângela.

Isso fica claro no pedido feito à reportagem pelo comerciante A.T.C., de 32 anos, que vai votar 'não' no referendo. 'Aqui, se alguém interpreta errado o que você disse, é problema na certa.' Ele foi assaltado pela última vez há cinco anos. 'Depois que você vira amigo do traficante isso pára', diz A.T.C., que trabalha há 17 anos no bairro. 'Essa proibição não vai desarmar o bandido. Vai ser como pôr uma placa na minha casa dizendo: aqui não tem arma de fogo.' Para o padre, a sensação de segurança da arma é um engano. 'Quando um bandido sabe que há uma arma na casa, é aí que ele vai roubar.' Crowe mantém cinco salas de alfabetização para adultos em sua paróquia. São cerca de 150 alunos.

Todos debateram nas últimas semana o 'sim' e o 'não' no referendo. 'Uns 40% iam votar ´não´ antes dos debates, mas isso mudou', afirmou o professor Francisco dos Santos.

Nem todos os alunos, porém, seguem o professor. A dona de casa Quitéria Alves Arcanja, de 52 anos, mãe de três filhos, expunha suas dúvidas ao professor na sala de aula quinta-feira. 'A pessoa armada está mais garantida.' Ela avisa que em casa ninguém tem arma e, apesar de dizer que todos estão 'indecisos', mostra inclinação pelo 'não'.

Quitéria nunca teve ninguém da família morto no bairro. Mas a dona de casa Marta da Silva, que mora há 58 anos no Ângela, de 10 irmãos, perdeu 3 - o último, Paulo, num assalto.

Sua amiga Maria José Barbosa, de 31 anos, contou como mataram seu cunhado, Agnaldo. 'Ele estava voltando para casa quando mandaram ajoelhar.' O rapaz implorou, mas não teve jeito. 'Atiraram nele dizendo pra quem via que estavam matando um malandro.' Maria José e Marta nunca tiveram arma em casa e já se decidiram. Vão votar pela proibição do comércio de armas de fogo. 'O pessoal aqui está cansado de ver arma na mão de criança de 12 anos. A maioria vai votar ´sim´', disse Maria José.

Uma veterana do bairro, a comerciante Vilma Andrade, de 40 anos, 30 vividos no Ângela, também vai votar 'sim' e não tem medo, ao contrário de outros comerciantes. 'Vi crescer a maioria dos bandidos daqui e com o tempo você aprende aonde pode ir.' O segredo, diz, é tratar bem todo mundo, não importa quem seja.