Título: As 'meninas superpoderosas' da ciência
Autor: Flávia Varella
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/10/2005, Vida&, p. A26

Especialista é otimista em relação à pesquisa com células-tronco, embora reconheça que há um longo caminho até seu uso terapêutico

As células-tronco são as vedetes do momento no campo da pesquisa científica. Anunciadas como objeto de estudo e como principal agente em tratamentos de áreas que vão da ortopedia à neurologia, elas dão a impressão de ser uma panacéia. Recentemente, um banqueiro paulistano entrou na Justiça para ter direito a pagar por uma cirurgia experimental com células-tronco que ele acredita poder trazer alívio a um tipo raro de esclerose degenerativa da qual é vítima. A expectativa que se criou em relação à terapia celular, porém, é inatingível. O geneticista Carlos Alberto Moreira-Filho, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo e diretor-superintendente do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo, explica, entre outras coisas, por que essa expectativa foi criada e esclarece a diferença entre células-tronco adultas e as polêmicas embrionárias, retiradas de embriões humanos. Escolhido pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência para apresentar o painel sobre o assunto no último encontro da comunidade científica brasileira, Moreira-Filho é otimista em relação a essas células, que ele chama de "meninas superpoderosas". "Elas podem fazer coisas maravilhosas, mas também coisas muito perigosas", diz. A seguir, a entrevista. Desde quando a ciência conhece as células-tronco?

Que a medula óssea tem células-tronco e que essas células dão origem às células do nosso sangue já se sabe há muito tempo. No início da década de 60, conseguiu-se definir as características genéticas que definem a compatibilidade entre pacientes, o que permitiu os transplantes de medula óssea principalmente para pacientes de leucemia. Depois, descobriu-se que as células progenitoras do sangue, as células-tronco, também existem no cordão umbilical. Inicialmente o interesse foi pela facilidade de obtê-las, já que os cordões são descartados aos milhares, todo dia, nos centros obstétricos. Mas aí se percebeu que elas não precisavam de uma compatibilidade estrita. Diante da facilidade de obtenção e da baixa imunogeneicidade das células-tronco de cordão umbilical, apareceu a questão: será que essas células não podem dar origem a outras coisas além de células do sangue? Foi aí que começaram os estudos.

E por que tanto entusiasmo?

Porque houve um espanto muito grande ao se descobrir a existência das células-tronco e o que elas são capazes de fazer. Identificamos muitos genes que controlam o processo de diferenciação. Começamos a entender os chamados "pathways", os caminhos de diferenciação que levam de uma célula não especializada a um neurônio, um músculo, a uma célula da retina. Mas acho que houve exagero na propaganda que se fez das potencialidades das células-tronco. Há um longo caminho para chegar a terapias eficientes. Temos de passar pela pesquisa básica, os testes de biossegurança, os experimentos com modelos animais e ainda os protocolos com pacientes.

Não é temerária a excessiva expectativa que se tem criado para os pacientes?

Acho que sim. Há doenças que, pela própria natureza, é muito pouco provável que você tenha uma terapia celular para ela. Doenças que afetam um sistema inteiro, como o locomotor, a distrofia muscular. Não dá para trocar todas as células musculares de um indivíduo. Quando você tem de substituir um tecido lesado, um grupo de células lesadas, é mais provável. Agora substituir um circuito neuronal é altamente complexo.

O sr. tem certeza de que a terapia celular ainda vai ter grande impacto clínico, mesmo que demore muito?

Ela não terá seguramente no curto prazo. E pode ter grande impacto só em algumas áreas da medicina. Não é uma panacéia. Não tem efeito tão disruptivo como foi a engenharia genética e a genômica. Porque embora você não tenha um tratamento genômico, que não faça engenharia genômica no paciente, uma enorme quantidade de drogas é produzida hoje graças à engenharia genética. Houve um impacto enorme. Mas sobre engenharia genética o público leigo também teve uma mensagem errada da mídia. Imaginou-se que os pacientes receberiam genes que fariam isso e aquilo. Não se fez nada disso, mas se usou o conhecimento na indústria farmacêutica. Qual é a diferença entre células-tronco adultas e embrionárias?

A grande vantagem das embrionárias é que elas podem dar origem a todos os tipos de tecidos. Mas há problemas de biossegurança. Elas são menininhas superpoderosas que podem fazer coisas maravilhosas e também perigosas, como tumores, já que têm uma plasticidade muito grande. Um experimento com ratos mostrou que, quando eles são tratados de AVC com células-tronco adultas ou embrionárias, o efeito é igual. Mas muitos dos tratados com as embrionárias desenvolveram tumores cerebrais. O processo de diferenciação neuronal no útero, quando se é ainda um feto, é um processo de gigantesca morte celular. No embrião esses processos são muito bem regulados, mas, quando você tira as células do embrião e não há nada para controlar, para onde é que elas vão? Como é que a gente pára? Outro problema das embrionárias é a biocompatibilidade. Um embrião tem uma determinada composição de genes de histocompatibilidade do sujeito que ia ser gerado. Como vou transferir um tecido nervoso derivado de células embrionárias para você? Haverá um problema de compatibilidade.

Já existem aplicações clínicas com células embrionárias?

Não. Hoje todas as aplicações são com células-tronco adultas.

Se as adultas podem fazer milhares de coisas, por que tanta insistência em trabalhar com as embrionárias?

As células-tronco adultas podem fazer muitas coisas, mas não tudo. E não sabemos o que as embrionárias podem fazer. O estudo das embrionárias é importante para conhecer os caminhos de diferenciação celular, entender que fatores levam à formação de epiderme, neurônio ou músculo. Isso é muito importante para saber que fatores de estimulação se usará numa terapia real. Então o bom senso recomendou que embriões cujo destino era a morte por inviabilidade fossem estudados e se descobriu que as linhagens celulares que saem dali são linhagens pluripotentes e podem dar origem a um monte de tecidos. Mas são montes de tecidos, em plaquinhas, em tubos de ensaio, não é um indivíduo. Não há nada de antiético em mexer com essas células.

Em que áreas as pesquisas clínicas estão mais avançadas?

Sabemos que as células-tronco podem originar neovasos. Então elas são úteis na revascularização do miocárdio. Já se sabe que é seguro fazer isso. Mas ainda é preciso avaliar como melhorar a vascularização e injetar células que originem vasos e não outras coisas como músculos que podem causar arritmia.

E, no entanto, existem trabalhos que buscam a formação de músculo cardíaco a partir de células-tronco.

Esse é um outro tipo de linha de pesquisa. É mais complicado porque esse novo tecido muscular tem de funcionar corretamente, se integrar com a rede de enervação do coração, bater direitinho. A complexidade é enorme. In vitro, nós geramos cardiomiócitos, as células precursoras do músculo cardíaco. Mas para formar músculo no corpo a célula tem de entrar exatamente no lugar certo.

Quando se fala em tratar problemas neurológicos, a dificuldade deve ser ainda maior.

É ainda mais complicado. Podemos até gerar células com características neuronais, mas isso não quer dizer que se vai reconstituir tecido neuronal. No momento, não temos a menor chance de fazer isso a partir de células-tronco. Um circuito neuronal não é um neurônio; é um conjunto de neurônios adequadamente ligados e que se liga a um local determinado do cérebro. A distância é muito grande entre a bancada de um laboratório e a beira do leito de um paciente.

Praticamente todo dia, nós, jornalistas, recebemos notícias de pesquisas com células-tronco. Dá a impressão de que elas estão na moda e, por isso, o dinheiro que financia pesquisas está indo para esse campo.

Há uma razão de se investir em terapia celular porque há uma perspectiva razoável de essas terapias estarem disponíveis para alguma doenças num espaço de tempo de cinco, seis anos. O avanço científico na área também tem dado resultados expressivos do conhecimento. Nós estamos aprendendo muita coisa, inclusive sobre câncer.

A alta expectativa pode levar ao desespero de pessoas como o banqueiro que foi à Justiça para receber transplante de células-tronco. Ele ganhou a liminar.

Isso talvez seja uma questão importante da convivência de cientistas com juristas. Temos de aprender a explicar para o juiz que enquanto um procedimento terapêutico não for cientificamente validado, não tiver todo o protocolo clínico feito, não há como garantir para o paciente nem a eficácia do tratamento nem sua segurança. Então não tem sentido forçar isso.

Fala-se muito que o Brasil está na elite dos países em pesquisas com terapia celular. É verdade?

Em relação aos países que são emergentes, nós estamos bem posicionados.