Título: Lula, Chávez e Kirchner negociam acordo na área nuclear
Autor: Denise Chrispim Marin
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/10/2005, Nacional, p. A4

Anunciada por Hugo Chávez, iniciativa foi confirmada horas depois pelo assessor da Presidência Marco Aurélio Garcia

SALAMANCA - Brasil, Venezuela e Argentina negociam um acordo de cooperação nuclear. Anunciada ontem pelo presidente venezuelano Hugo Chávez, a iniciativa foi confirmada horas depois pelo assessor da Presidência para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, que comentou não ver "nenhum problema" no projeto. "Há uma iniciativa da Venezuela no compartilhamento de projetos comuns na área nuclear. Não vejo problemas porque os programas dos três países são transparentes, pacíficos e protegidos de qualquer derivação militar", afirmou Garcia. Sobre o futuro acordo, disse o assessor, não há nada ainda posto no papel.

MUDANÇA DE POSIÇÃO

A declaração de Garcia indicou uma mudança substancial na posição do governo brasileiro sobre a cooperação nuclear. Até aqui, o único acordo que o Brasil havia assinado com outra nação latino-americana nesse campo foi com a Argentina, nos anos 90. O acordo acabou sendo embrião do próprio Mercosul e apagou do cenário especulações sobre uma possível corrida militar sul-americana. Os dois parceiros mantêm estreita cooperação nuclear por meio da Agência Brasil Argentina de Contabilidade e Controle (ABACC).

Em maio passado, quando Chávez falou publicamente pela primeira vez sobre uma cooperação trilateral reunindo Venezuela, Brasil e Argentina ¿ com a agravante de incluir o Irã ¿ a reação do governo brasileiro foi gélida. À época, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, foi enfático e declarou não haver nenhuma disposição do governo brasileiro em estender a cooperação nuclear a outros países. O Ministério da Ciência e Tecnologia também negou a chance de um acordo.

Mas algo mudou. "Qualquer país que queira compartilhar com o Brasil os seus programas de uso pacífico será bem-vindo", disse Garcia ontem. Ele também desdenhou a possível reação de potências ¿ principalmente os Estados Unidos ¿ sobre essa tríplice aliança nuclear que, em seu ponto de vista, teria o objetivo exclusivo de proporcionar capacidade de produção e fornecimento de energia pacífica.

CAIXA DE BARATAS

Questionado se o acordo não seria o mesmo que "bulir em uma caixa de escorpiões", ele rebateu que, no máximo, sairiam "baratas" dali e acrescentou que o Brasil não poderia deixar de assumir uma atitude soberana apenas porque há posições contrárias de outros países.

No fim do ano passado, a iniciativa do governo Chávez de reequipar suas Forças Armadas com a compra de grandes quantidades de fuzis, navios e caças despertou forte reação da Casa Branca e gerou advertências contra uma corrida armamentista da Venezuela. Ontem Garcia argumentou que a América do Sul, pela ótica militar, continuará a ser uma região desnuclearizada, que a política nuclear brasileira foi reconhecida como adequada pelos Estados Unidos e que suas ações são "absolutamente monitoradas" pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).

Ele omitiu que o Brasil ainda não fechou a negociação do protocolo adicional ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), do qual se tornou um tardio signatário, no fim dos anos 90. Esse protocolo imporia inspeções muito mais rigorosas e invasivas às plantas de processamento de urânio e outros materiais atômicos. Há dois anos, exigências menos duras causaram problemas entre o Brasil e a AIEA. Garcia também deixou de considerar que Venezuela, Argentina e Brasil não têm necessidade urgente de fontes energéticas adicionais, já que os dois primeiros são exportadores de petróleo e o Brasil programa anunciar sua auto-suficiência ainda este ano.

Os três países trabalham em outras iniciativas menos alarmantes, como projetos de construção de usinas hidrelétricas e térmicas, linhas de transmissão e de ligação de todo o continente às jazidas de gás da Bolívia e do Peru por meio de gasodutos.