Título: O referendo sobre as armas
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/10/2005, Notas e Informações, p. A3

A maior parte das armas em poder dos bandidos foi tomada de pessoas de bem que as adquiriram legalmente. Logo, para privar os bandidos dessa fonte de abastecimento de revólveres e pistolas, desarme-se a população ordeira - afirma a propaganda a favor da proibição do comércio de armas de fogo. Certo? Errado, muito errado! Esse é um sofisma grosseiro, para justificar uma falsa solução, que agride a lógica e fornece a desculpa para as autoridades incapazes de conter o surto de banditismo que há anos castiga o País. Vejamos: se os delinqüentes se armam, roubando pessoas de bem, o que os agentes do Estado têm de fazer é impedir que os bandidos ajam à vontade, e não desarmar as pessoas honestas. Mas o que está em jogo no referendo do dia 23 não é uma simples questão de lógica. Vai-se decidir, por maioria simples, se os cidadãos abdicam de um direito fundamental da pessoa humana: o de legítima defesa, sua e de sua família. Sendo esse o verdadeiro objeto do referendo, causa espécie que nenhum dos defensores da teoria das cláusulas pétreas da Constituição tenha ido à Justiça para impedir a realização da consulta popular. Afinal, o seu resultado pode ser a revogação de um direito inalienável.

O fato é que a proibição do comércio de armas e munições, como se pretende, não constitui apenas limitação ou regulamentação de um direito. Se for aprovada, a liberdade será duplamente esbulhada: estará suprimido um direito - o que é um retrocesso cívico - e consagrada mais uma intromissão do Estado na esfera da escolha individual - o que caracteriza a segunda agressão à liberdade. O Estado pode decidir, por meio de leis como o Estatuto do Desarmamento, que para adquirir uma arma o cidadão preencha rigorosos requisitos. Pode limitar a casos especialíssimos o porte dessas armas. Mas serão violados os direitos constitucionais se impedir que o cidadão se proteja e à sua família, vedando-lhe o acesso aos meios de defesa. E, se isso acontecer, ficam derrogados ainda os direitos à incolumidade, à dignidade e ao patrimônio, além de tornar-se tábula rasa o direito à legitima defesa, que as leis asseguram.

Essas mesmas leis, quando determinam que só ao Estado cabe punir os criminosos, não estatuem que o cidadão deva ficar inerme e indefeso diante do assaltante, do assassino ou do estuprador. Como afirma o jurista Adilson Abreu Dallari, 'defender-se ou não, ter ou não ter uma arma, reagir ou não a uma agressão é uma opção pessoal'. E essa opção deixará de existir se for proibido o acesso às armas necessárias à defesa pessoal.

Convocou-se um referendo cujo objetivo evidente é desarmar as vítimas e armar o governo com um argumento para disfarçar o fracasso de sua política de segurança. Os criminosos, esses, como reconhece o ministro da Justiça, continuarão armados. Esse é o corolário da estapafúrdia idéia, 'politicamente correta', que considera a vítima culpada pela agressão que sofre e o bandido é a vítima de tudo e de todos, inclusive e principalmente da sociedade. Segundo o bom-mocismo vigente, o agressor não comete um crime; pratica uma violência - e a vítima que reage não exerce seu direito de legítima defesa; também pratica uma violência. Bandidos e pessoas de bem foram igualados. É assim que se apresenta o referendo: uma manifestação da sociedade contra a 'violência'.

No entanto essa percepção é inerentemente violenta e autoritária. Primeiro, porque desarmando a população ordeira os bandidos ficam automaticamente incentivados a exercer o seu ofício nefando. Terão a certeza de que não correrão qualquer risco. Depois, porque erige-se em direito a intromissão do Estado não só na esfera das decisões individuais, mas na escolha do que é bom e do que é pernicioso para a sociedade.

Por fim, mas não menos importante, esse referendo mascara uma das mais gritantes falhas do governo. A população brasileira, ao contrário do que se tenta fazer crer, não está armada até os dentes. Não mais de 1,4% dos brasileiros tem uma arma em casa. Na Suíça, onde as estatísticas da criminalidade violenta são irrelevantes, um terço dos habitantes tem pelo menos uma arma de fogo. O problema é que, aqui, a polícia e o sistema judiciário são ineficientes.

Se há crimes em excesso, se a população se sente insegura, isso se deve a governos como o atual, que não hesita em gastar R$ 270 milhões com o plebiscito, mas não aloca mais do que R$ 170 milhões para as despesas com segurança pública. É esse o verdadeiro problema.