Título: Eldorado, a cidade que pegou aftosa
Autor: José Maria Tomazela
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/10/2005, Economia & Negócios, p. B4

Doença que só atinge o gado está se transformando numa tragédia também para a população, que agora teme o desemprego

ELDORADO (MS) - Sentado à beira da Rodovia BR-163, o borracheiro Crescêncio Dionísio Costa, um baiano de 54 anos, olha, desolado, o pátio vazio e se pergunta onde estão os caminhões boiadeiros que faziam filas na frente de sua pequena oficina para reparos em pneus e freios de seus veículos. Na falta do que fazer, ele discursa para quem se dispõe a ouvi-lo culpando o governo pelo seu ócio forçado. 'Estava na cara que ia dar nisso, com tanto contrabando de gado na fronteira.' Ele fala do foco de febre aftosa que produziu os efeitos de um tsunami em Eldorado, município ao extremo sul de Mato Grosso do Sul, a 445 quilômetros da capital, Campo Grande, na fronteira com o Paraguai. Desde segunda-feira, quando a doença foi confirmada, a economia da cidade e de quatro municípios vizinhos - Iguatemi, Mundo Novo, Japorã e Itaquiraí - praticamente travou. 'Parece que todo mundo pegou aftosa', continua Costa.

Depois do abate dos 582 bovinos da Fazenda Vezozzo, onde o foco surgiu, todo o rebanho desses municípios, de 658,8 mil cabeças de gado de leite e corte, foi interditado. O governo decretou estado de emergência sanitária num raio de 25 quilômetros do foco.

Nenhuma vaca, boi ou bezerro pode ser transportado, embarcado ou abatido. Nem um quilo de carne desse rebanho pode ser vendido, ou um litro de leite, comercializado.

Até sexta-feira, tinham sido montadas 35 barreiras sanitárias para impedir o transporte de gado e seus produtos para fora da região. O impacto atingiu toda a pecuária nacional, que tem em Mato Grosso do Sul o maior rebanho, com 25 milhões de cabeças. É o gado que sustenta as exportações de carne de São Paulo, maior exportador desse produto do Brasil.

Os três frigoríficos da região, que juntos empregam 2 mil pessoas, além de outros 4 mil empregos indiretos, anunciaram, na sexta-feira, férias coletivas. Amanhã, eles já não abrem as portas. Um deles, o Boifran, sustenta boa parte da economia de Eldorado, com um movimento aproximado de R$ 12 milhões por mês. Desse total, pelo menos metade ficava na cidade, segundo o proprietário João Eduardo Ramalho.

TRAGÉDIA

A prefeita de Eldorado, Mara Caseiro (PDT), fala em tragédia. 'A cidade está sofrendo', diz. Na prefeitura, a perda de receita pode chegar a R$ 180 mil por mês.

Dos 11.066 moradores contados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quase a metade depende, de alguma forma, das atividades do frigorífico.

Além dos 600 empregados, muitos moradores prestam serviços aos caminhoneiros e transportadores de gado.

Eram abatidos 500 animais por dia. Os caminhoneiros enchiam o pátio do baiano Crescêncio Dionísio Costa. 'Era um pneu furado, uma roda torta, pois as estradas estão todas que é só buraco', prossegue ele, criticando o governo. Lotavam também a churrascaria de Domingos Delevatti, a Soledad, na beira da pista. 'Não sei como vou fazer sem carne, pois tudo o que vendo é churrasco.' Para o consolo de Delevatti, a churrascaria foi escolhida como refeitório pelos agentes do Iagro, a agência de defesa animal do Estado, e pelos policiais que, agora, patrulham as áreas da fronteira.

Os agentes se revezam nas barreiras, como a que impediu o criador Élvio Pedroso de passar com dois latões de leite. Ele quase chorou quando os agentes despejaram o líquido branco numa vala de terra vermelha. A produção leiteira movimenta, incluídos os fretes, R$ 138 mil por mês, segundo a prefeita. Na maioria, são pequenos produtores. Agora, já falta leite mesmo em caixinhas.

ÓCIO FORÇADO

O comércio sente outros efeitos da crise. O comerciante Ademir Cerrutti, de 57 anos, vê as mesas vazias no Bar e Bocha da Amizade, ponto de encontro de caminhoneiros. 'O boi parou, a safra foi muito fraca, o povo sumiu.' Os poucos fregueses, como Enedir Delevante e Eduardo Rubens, ocupam por horas a mesa de carteado, jogando canastra. Na cancha de bocha, uns poucos aposentados, como José Guarda e Murilo Ferreira.

De acordo com o presidente da Associação Comercial da cidade, João Belarmino, o impacto do 'desastre' no comércio local será de R$ 1 milhão em 15 dias. Ele tem receio da inadimplência que o desemprego poderá causar.

Em Iguatemi, o bloqueio das importações que levou ao fechamento temporário do Bom Charque causou um prejuízo ainda incalculável, segundo o prefeito Lídio Ledesma. 'A principal atividade desta região é a pecuária', diz.

A receita municipal pode cair de 30% a 50%. Ele baixou decreto considerando o município em situação de emergência e está convocando voluntários para arrecadar recursos da comunidade visando a assistir a população afetada.

A paralisação do Bom Charque afetou também Japorã e Eldorado, que exportam mãode-obra para Iguatemi.

Diariamente, moradores da periferia dessas cidades lotam vários ônibus e seguem para o trabalho. Na sexta-feira, a ex-radialista Agnes Fontes levantou às 3h30 e correu para o ônibus, parado na saída de Eldorado, sob a luz fraca dos postes, para a viagem de 38 quilômetros. Ela e outros 25 moradores estavam esperançosos. 'A empresa está investindo, vai chegar a 2 mil funcionários', informa. O desossador Rafael Viana conta que o frigorífico valoriza quem trabalha bem. Elizangela Togninato diz que o serviço de desossa é pesado, mas encara as 10 horas de jornada, incluindo a viagem, por necessidade. 'Tenho uma filha de dois anos e contas para pagar.' Amanhã, o ônibus já não vai mais circular. Na sexta-feira, todos voltaram para casa depois de assinar uma notificação de férias, medida adotada pelo frigorífico.