Título: Um mistério com muitos suspeitos
Autor: Fabíola Salvador e Lu Aiko Otta
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/10/2005, Economia & Negócios, p. B3

Acusação de responsabilidade pelo ressurgimento da aftosa em Mato Grosso do Sul já envolve até os bolivianos

Tal como num livro de Agatha Christie, qualquer um pode ser o culpado. O surgimento de um foco da febre aftosa em Mato Grosso do Sul, que poderá causar prejuízos de até US$ 1 bilhão às exportações, abriu uma temporada de acusações em que todos são suspeitos: do governo aos produtores, dos paraguaios a um vírus mutante. O presidente Lula afirmou que o principal responsável pela vacinação é o dono do rebanho, provocando irritação entre os produtores. A causa do ressurgimento da aftosa, porém, ainda está sendo investigada e da solução desse mistério depende a elaboração da estratégia do Brasil para derrubar os embargos internacionais ao produto. 'Não temos a menor dúvida de que o problema foi a falta de recursos', afirma o deputado Eduardo Paes (PSDB-RJ). Seu partido proporá à Comissão de Agricultura da Câmara que convoque os ministros da Agricultura, Roberto Rodrigues, e da Fazenda, Antonio Palocci, a dar explicações. Rodrigues vinha se queixando da dificuldade em fazer Palocci liberar os recursos prometidos à sua pasta.

Um olhar mais cuidadoso nos números, porém, mostra que a explicação é mais complicada. O ministro da Fazenda é acusado por praticamente todos os colegas da Esplanada de segurar os gastos do governo além do necessário, levando vários programas ao limite. Isso lhe confere o status de mordomo do suspense, sempre o primeiro suspeito. Mas, no caso da Agricultura, havia verba liberada de R$ 91 milhões para programas de defesa sanitária, dos quais apenas R$ 50 milhões foram empenhados até hoje. O empenho é um compromisso de pagamento, ou seja, o dinheiro foi vinculado à compra de algum produto ou serviço a ser entregue.

Os R$ 41 milhões restantes estão parados, segundo o próprio Rodrigues. Mesmo não tendo gasto todo o dinheiro, o ministro voltou à carga pedindo mais verbas. Agora, quer mais R$ 78 milhões. A constante disposição para brigar por recursos rendeu a Rodrigues o apelido, dado por Lula, de 'cricri'.

Ele disse que o dinheiro não foi usado porque é verba que deveria bancar programas propostos pelos Estados. Mas os Estados não apresentaram propostas - como é o caso de Mato Grosso do Sul. Só recentemente, às vésperas da crise, apresentou seu plano. Se aprovado, deverá receber R$ 3,5 milhões.do em regiões próximas do Paraguai', afirma.

O diretor da Agência Estadual de Defesa Sanitária Animal e Vegetal (Iagro), João Cavallero, acrescenta que em dois focos surgidos no Paraguai, em 2000 e 2001, foi achada a variedade tipo O da doença, a mesma encontrada em Eldorado. 'É muita coincidência', diz. A acusação de Zeca do PT irritou o governo paraguaio.

A reportagem do Estado mostrou que os rebanhos circulam sem o menor controle na região da fronteira. Para piorar, os gastos com controle sanitário na fronteira caíram drasticamente. Segundo dados do Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi), os gastos federais caíram de R$ 60,9 milhões em 2000 para R$ 2,2 milhões de janeiro a outubro deste ano.

Não foram só os paraguaios os acusados de propagar o vírus da aftosa. O senador Osmar Dias (PDT-PR), ex-secretário de Agricultura de seu Estado, afirmou esta semana que a culpa é dos bolivianos. Osmar Dias lembra que o Senado aprovou este ano uma medida provisória para doar vacinas àquele país, dentro de uma estratégia de fortalecer o controle além da fronteira. 'Mas lá a vacinação não é obrigatória e eles não vacinaram nada', afirma o senador. Ele acrescenta que tampouco no Paraguai há controle sobre a saúde dos animais.

OUTROS CULPADOS

A falta de controle sanitário na fronteira lança suspeita sobre outro grupo: os sem-terra que vivem na região e têm algumas cabeças de gado. Eles poderiam ter trazido animais doentes do país vizinho. O governador Zeca do PT não descarta essa hipótese e diz que tudo está sendo investigado.

No governo, a versão preferida é de negligência dos produtores. O presidente Lula afirmou que cabe aos pecuaristas a responsabilidade número um pela sanidade dos rebanhos, afirmação reiterada por seu assessor para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia. 'Um produtor com 500 cabeças de gado não pode gastar R$ 800,00 com as vacinas? Se tivesse vacinado, o foco não teria aparecido.' Outra suspeita que pesa sobre os pecuaristas é de ter comprado gado paraguaio, mais barato que o nacional. Os animais chegam com certificados de vacinação, mas os próprios criadores da região põem em dúvida a veracidade dos documentos.

Os pecuaristas justificam seu 'pão-durismo' com os baixos valores que recebem pela produção. Nesse caso, a culpa seria dos exportadores. As suspeitas avançam pelo campo científico. Os proprietários da fazenda Vezozzo, onde surgiu o gado doente, possuem certificados de que vacinaram seus animais. Por isso, o Ministério da Agricultura considera a hipótese de a vacina não haver funcionado devido a má qualidade ou não ter sido estocada na temperatura correta.

Outra suspeita é de que tenha aparecido uma variedade mutante do vírus, imune às vacinas existentes no mercado.

Essa possibilidade, porém, perdeu força. De acordo com o presidente do Fórum Permanente de Pecuária de Corte da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Antenor Nogueira, o vírus encontrado em Mato Grosso do Sul é da variedade O1 positivo, que já foi detectado outras vezes no País, assim como no Paraguai e na Argentina.