Título: Quanta indecência!
Autor: Gaudêncio Torquato
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/10/2005, Espaço Aberto, p. A2

O presidente Lula, do alto da gabolice, proclamou há dias não haver no País pessoa mais ética que ele. Para eleger seu candidato, Aldo Rebelo, à presidência da Câmara, o governo engrossou o rolo compressor, prometendo mais de R$ 1 bilhão para o Ministério dos Transportes, comandado pelo PL, e oferecendo cargos aos partidos envolvidos no escândalo do mensalão. Ganhou por 15 votos. Há 15 parlamentares ameaçados de cassação. Quanta indecência! O ex-ministro José Dirceu, falando com a convicção de que sabe tudo, atribuiu a Lula "responsabilidade política" pela crise. O mandatário, que tanto aprecia discursos, faz ouvidos de mercador e não passa recibo à ênfase posta por seu ex-braço direito. Lula tem tanta responsabilidade pela crise quanto conhecimento da tática de arrumação parlamentar, adotada por ele, na semana passada, para salvar o que resta de seu governo. O alagoano Renan Calheiros, presidente do Senado, convenceu o presidente do seu partido, Michel Temer, a se candidatar à presidência da Câmara. No mesmo dia, conversou com Lula e, com o endosso de Sarney, escolheu Aldo Rebelo como candidato da base governista. Por quê? Porque o também alagoano Thomaz Nonô, no comando da Casa, causaria danos à sua candidatura ao governo de Alagoas. Questão paroquial passou a ser questão federal. Além de trair o presidente do PMDB, sigla a que pertence, jogou no lixo a fidelidade partidária. Para agravar a performance, usou a força que detém no comando do Senado para interferir na Câmara. Leitura: se a instituição política chafurda na sarjeta, é porque há lideres que fecham os olhos à ética. Quanta indecência! No âmbito das CPIs, parlamentares denunciados respiram, aliviados, no balão de oxigênio do Conselho de Ética e da Corregedoria da Câmara, esperando contar com a boa vontade do novo presidente da Casa, testemunha de defesa do ex-ministro de José Dirceu. Aldo acha liberação de verba "ato ordinário, cotidiano" e afirma ter "coragem e isenção" para absolver colegas.

O quadro é estarrecedor. Agora, a sociedade se depara com a figura do presidente da República no centro das negociações. (E continuam a garantir que ele não sabia de nada do mensalão?) Lula até se pode vangloriar como César, na travessia do Rubicão: "Vim, vi e venci." Precisa tomar cuidado. Sua maior conquista política poderá vir a ser uma vitória de Pirro, aquele rei de Épiro que, depois de comemorar vitória parcial sobre o poderoso exército romano, constatou que "mais uma batalha daquelas" destroçaria seus exércitos. O governo andará no fio da navalha com a Câmara dividida ao meio. Terá de abrir os cofres. Caso não o faça, a frágil maioria se desfaz. Lula será prisioneiro das forças mais retrógradas do Congresso.

É evidente que procurará desvencilhar-se das cordas brandindo a lâmina - já não tão afiada - do carisma. O homem veio mesmo para o centro do tapume. Ao receber atletas e vestir um quimono, nessas cerimônias circenses que funcionam como gastronomia dos olhos no banquete da crise, Lula se disse pronto para a briga e disposto a entrar no "tapume", em lugar do tatame dos judocas. Não, não houve confusão, conforme registrou a imprensa. Houve paralisia labial, para usar a expressão de José Ingenieros: "O hábito da mentira paralisa os lábios do hipócrita." O inconsciente de Lula falou mais alto. O tapume é o esconderijo para negociações com recursos não contabilizados (mensalões) ou recursos contabilizados (supermensalões). Quem deve mais sofrer com o ciclo "Lula no tapume" é Palocci. Sob pressão de barriga estufada, estoura-se o cinturão econômico. O ministro da Fazenda não se pode queixar, pois ele também vetou Temer em prol de Rebelo.

Quanto a este, trata-se de perfil com visão histórica de país e causa boa impressão a interlocutores. Não faltará vontade para lapidar a imagem destroçada da instituição. Esbarrará no busílis. Não haverá tempo para alcançar a meta. E a sociedade está tão irritada com os políticos que não distinguirá a limpeza que se fizer no retrato da Câmara. O comprometimento de Aldo com os aliados - incluindo os 15 nomes na lista de cassáveis - fará pender a "isenção" para os ameaçados. Não há coração que resista à pressão de luta travada com emoção. Um pouco de calor agradecido adoçará sua postura.

No mais, a vitória de Lula fornece a cola para grudar os interesses interpartidários. PSDB e PFL fortalecerão a aliança para 2006. O PMDB, mesmo dividido, expandirá o teor crítico. Há uma decisão de convenção, não derrubada, defendendo candidatura própria à Presidência da República. O que sobrará ao governo? PT "sub judice", partidos "queimados" e pequena fatia ideológica. É pouco para a reeleição.