Título: Eleição haitiana terá poucos eleitores e muitos candidatos
Autor: Eduardo Nunomura
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/10/2005, Internacional, p. A20

PORTO PRÍNCIPE - E se as eleições haitianas fracassarem? O establishment da ONU já trabalha com essa hipótese, tamanha a imprevisibilidade das urnas. Numa corrida em que há 32 candidatos à presidência, uma desconhecida, mas previsivelmente reduzida participação de eleitores e fatores de instabilidade latentes, esperar que nasça desse processo um novo país é utópico. ¿O Haiti no dia seguinte às eleições será bastante parecido ao de hoje¿, diz o embaixador chileno Juan Gabriel Valdés, chefe da missão de paz da ONU, sinalizando um futuro nebuloso. ¿O próximo governo vai precisar de mais quatro anos de apoio da comunidade internacional. Pensar que se pode abandonar o país depois de recém-eleito um governo é uma irresponsabilidade.¿ As eleições serão marcadas pela desigualdade, uma vez que não há financiamento público de candidatos. O político que tiver mais recursos contará com outdoors, propaganda nas rádios, muitas vezes controladas por eles mesmos, e cabos eleitorais. Quem não tiver, terá de apelar para o carisma e as pichações que já brotam por toda a parte em paredes cinzas das casas haitianas, nunca acabadas. O fantasma que atormenta o Comitê Eleitoral Provisório (CEP), responsável pela organização das eleições, é a participação popular. Na verdade, a falta dela. A previsão inicial era de 4,5 milhões de eleitores ¿ no Haiti, estatísticas são manipuláveis. Hoje, se houver 3 milhões de inscritos já será uma vitória.

Depois de uma corrida inicial, os haitianos deixaram vazios os postos de registro eleitoral. Num país onde metade da população é analfabeta e sem acesso a qualquer vestígio de poder público, muitos não sabem que haverá eleições. Para evitar o fiasco, um decreto do governo provisório determinou que o título de eleitor serviria também como carteira de identidade ¿ haitianos não têm RG. Até o calendário está ameaçado e ninguém garante que o primeiro turno ocorrerá em 20 de novembro. Votar não é obrigatório. ¿O essencial é o qualitativo e não o quantitativo¿, afirma Gérard le Chevallier, chefe do CEP.

Desde o fim de fevereiro de 2004, o Haiti vive uma situação de instabilidade política. Grupos rebeldes forçaram a saída do presidente Jean-Bertrand Aristide, com apoio dos Estados Unidos e França, que em seguida enviaram tropas. Quatro meses depois, a ONU iniciava a missão de paz. E a partir daí o Brasil se envolveu numa arriscada tarefa diplomática ao aceitar liderar uma força militar no país mais pobre das Américas.

É o segundo maior esforço militar brasileiro no exterior, só atrás de uma missão no Oriente Médio nos anos 50 e 60 (ver quadro na pág. 20). Pela primeira vez, países latino-americanos, como Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Peru, comandam uma missão desse porte.

MANDATO

A Minustah foi criada para cumprir um mandato claro: estabilizar o país, permitir a realização de eleições democráticas e desarmar os haitianos. A última meta já foi deixada de lado. As apreensões de armas foram irrisórias e nenhum programa sério de desarmamento foi lançado. O Haiti vive uma situação de relativa calma, mas é difícil prever o dia seguinte com tantos grupos armados. Por isso, as eleições viraram uma incógnita. Tanto pode ser a comprovação do fracasso da ONU e dos latino-americanos na liderança da missão, como o primeiro passo na formação de um governo legítimo.

Apesar de haver 32 candidatos, dois lados opostos devem polarizar a atenção. Os partidários do Família Lavallas, cujo candidato preferido está preso, o padre Jean Juste, e não concorrerá, e o influente Grupo 184, de empresários haitianos apoiados pelos Estados Unidos. Anos atrás, empresas haitianas explorando mão-de-obra barata eram um grande fornecedor de uniformes e componentes eletrônicos para os americanos. ¿Somos maioria e fomos excluídos. Vamos boicotar e protestar contra essas eleições¿, ameaça John Joël Joseph, conselheiro do Lavallas. Já a elite haitiana ainda não definiu seu candidato. Mas, numa nação miserável, dinheiro de campanha pode fazer toda a diferença.