Título: O dragão equilibrista
Autor: Gilberto Dupas
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/10/2005, Espaço Aberto, p. A2

A China é o novo fenômeno da economia global. Em 1978, o seu comércio externo era de US$ 21 bilhões, passou para US$ 850 bilhões, o terceiro maior do mundo. Com sua mão-de-obra insuperavelmente barata e bem qualificada, o país transformou-se no grande produtor mundial de bens de consumo durável para as corporações mundiais; isso lhe gera um superávit de US$ 200 bilhões anuais com os EUA, que aplica em grande parte em títulos do próprio Tesouro americano. A fome dos chineses por matérias-primas para sustentar seu crescimento de quase 10% ao ano tem, para a sorte do Brasil, mantido em forte ascensão o preço internacional de commodities nos últimos quatro anos. Mas, apesar de "sócios" na economia global, são intensas as rivalidades entre os EUA e a China; e seu crescimento é visto com receio por parte expressiva das lideranças ocidentais. É importante verificar como intelectuais e líderes chineses vêem essa questão. Zheng Bijian, presidente do Fórum de Reforma da China, diz que o plano estratégico do país prevê mais 45 anos até que possa atingir um estágio equivalente a uma nação desenvolvida de nível médio. Afinal, sua renda per capita (pelo PPP) é de US$ 5,5 mil anuais, cerca de metade da mexicana e dois terços da brasileira. As limitações críticas chinesas são escassez de recursos naturais para suportar o imenso crescimento da demanda de 1,3 bilhões de pessoas, graves impactos ambientais e falhas de sincronia entre crescimento do PIB e desenvolvimento social. Há várias outras tensões a superar: desenvolvimento tecnológico versus geração de empregos; orientação pró-mercado versus cuidados com a população carente; urbanização versus produção de alimentos; e aumento do fosso entre ricos e pobres.

O governo chinês coloca-se diante de três grandes desafios estratégicos: ultrapassar o modelo de industrialização, baseado em alto consumo de energia, grande poluição e elevado investimento, por outro baseado em tecnologia, baixo consumo de recursos naturais e reduzido impacto ambiental; superar a rota do conflito ideológico como forma de ascensão; e construir uma sociedade socialista harmoniosa e democrática. Também neste último capítulo há enormes problemas. A China cresce hoje porque um governo forte pode impor linhas gerais inteligentes na economia e na política. A visão chinesa de democracia não é, nem poderia ser, a ocidental; da mesma forma que "socialismo de mercado" é uma expressão ambígua e contraditória. O governo fala em pavimentar o caminho para a democracia com o lançamento de grande número de programas de "educação moral", linguagem que lembra o velho Mao.

Os desafios políticos e sociais da brilhante escalada chinesa são imensos. Cerca de 10 milhões de pessoas migram a cada ano do campo para as cidades, buscando escapar da pobreza e ter acesso a novas oportunidades. Mas uma das conseqüências desse fluxo é a quebra dos laços entre o cidadão e seu município, rompendo o elo da cadeia que lhe permitia receber os benefícios sociais do Estado. Com isso, já existe um exército de cerca de 80 milhões de chineses miseráveis - que tende a aumentar - dispostos a trabalhar pelo país afora como semi-escravos em tarefas informais de baixíssima remuneração. Essa realidade tem graves efeitos por ser inédita numa nação que, à época do regime comunista, tinha uma pobreza horizontal intensa; mas a cada cidadão se garantia uma vestimenta, duas tigelas de arroz diárias, educação e saúde básicas.

Wang Jisi, reitor na Universidade de Pequim e diretor do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais do PC Chinês, é muito realista ao reconhecer que a supremacia global dos EUA só declinará em muito longo prazo. Jisi conclui, pois, que uma cooperação com Washington é de vital importância para a China. Por outro lado, acha que os EUA precisam da China para controlar o terrorismo, a proliferação nuclear, o Iraque e o Oriente Médio. Mas adverte que, apesar de toda a sua força, os EUA não são invencíveis e precisam de ajuda e alianças. Para ele, os EUA colaboraram muito para o esfriamento das relações China-Japão. No caso da Coréia do Norte, acha que os americanos não tinham escolha e aceitaram o auxílio de Pequim para acalmar as ameaças de Pyongyang. Já nas divergências sobre Taiwan, a China as encara como uma questão interna e pede aos EUA que não se envolvam.

Assim, embora sócios importantes na economia global, as relações EUA-China permanecem com grandes paradoxos. Não há confrontação, como foi com a Rússia na guerra fria. Mas os chineses querem uma relação entre iguais, e ela é muito assimétrica em função da projeção de poder dos dois países. Se os EUA crescerem apenas a 2% ao ano - metade da taxa atual -, ainda serão três vezes maiores que a China em 2025, se ela continuar a crescer a 8%. Portanto, ela precisa de paz para trabalhar seu complexo projeto.

A China é um dragão equilibrando-se sobre uma fina corda; se os EUA a balançarem demais, os dois sofrerão. Por outro lado, fracassos dos EUA no Oriente Médio e no combate ao terrorismo na Ásia implicam para a China risco de falta de petróleo e insegurança nas fronteiras do oeste. Em resumo, a China sente-se simultaneamente forte - pelo sucesso econômico - e vulnerável porque percebe os EUA espreitando para desestabilizá-la. O mundo espera um entendimento mais sólido entre ambos que permita a manutenção do crescimento mundial e de uma ligeira sombra sobre a arrogante hegemonia norte-americana. A China pode estar mostrando um caminho para que outras nações tentem sua inserção na lógica global com alguma autonomia e vantagem. Essa idéia, batizada como Consenso de Pequim por Joshua C. Ramo, é promissora para o equilíbrio mundial.