Título: Urucubaca feita em casa
Autor: Rolf Kuntz
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/10/2005, Economia & Negócios, p. B2

Deu a lógica, como se diz no jargão do futebol, uma linguagem familiar ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Só uma sorte fora do comum teria livrado o Brasil de um novo foco de aftosa, neste ano. Só um anjo da guarda em hora extra teria poupado o País de um apagão em 2001. Só uma extrema tolerância dos deuses teria evitado a epidemia de meningite nos anos 70. Só uma extraordinária conjunção astral teria impedido o crime organizado de impor seu domínio ao Rio de Janeiro.

Todos esses fatos eram previsíveis. Sinais de alerta precederam todos os desastres. Nenhum deles foi produzido por circunstâncias incomuns. Resultaram não de erros ocasionais, mas da imprudência e da negligência levadas muito além dos limites de segurança.

O novo surto de aftosa em Mato Grosso do Sul é não só um tropeço econômico. É um evento humilhante. O objetivo oficial do governo era erradicar a doença até o fim do próximo ano. O assunto parecia liquidado no Centro-Sul. O Norte e o Nordeste seriam as últimas frentes do combate à aftosa.

Tudo isso seria verdadeiro, se os controles fossem mantidos sem falhas nas áreas consideradas livres do problema. Mas faltou dinheiro, faltou gente, faltou fiscalização. O governo falhou.

Mesmo os melhores programas estão sujeitos a falhas, especialmente nas condições do Brasil. É preciso controlar um rebanho de quase 200 milhões de cabeças num território enorme. É necessário dispor de gente para fiscalizar não só a vacinação, mas também a qualidade das vacinas. É indispensável vigiar fronteiras. Todas essas dificuldades podem fornecer atenuantes. Mas o governo federal facilitou. O governo de Mato Grosso do Sul não recebeu as transferências necessárias. As verbas orçadas para todo o País eram insuficientes, as liberações foram reduzidas e houve lentidão, aparentemente, na execução das tarefas.

Podem ter ocorrido muitas falhas. As mais perigosas são também as mais evidentes. O governo não tem uma clara noção de prioridades. Falta a percepção das tarefas indispensáveis. Falta coordenação para concentrar recursos nos objetivos e nas funções mais importantes.

O Brasil sofreu um apagão porque faltou investimento na geração de energia. A seca de 2001 precipitou a crise, mas o risco estava criado. O relatório do Departamento Nacional de Águas não deixou dúvida sobre o assunto.

O apagão foi possível porque se perdeu, no governo brasileiro, uma noção considerada elementar nos anos 50: deve-se planejar a oferta de energia para muito tempo à frente, não para os anos próximos. É possível comprar em cima da hora um torno produzido em série, não uma usina elétrica.

Podem variar os modelos de desenvolvimento escolhidos pelos políticos, mas certos cuidados são indispensáveis em qualquer caso. Maior oferta de energia será sempre necessária. Saneamento básico, idem. Nos anos 60 e no começo dos 70, gastou-se muito com energia e rodovias e se deixou de lado a saúde pública.

A conta apareceu em 1974, com a epidemia de meningite. Saneamento foi uma das principais bandeiras do governo de Paulo Egídio Martins, em São Paulo, e não por acaso. A necessidade havia sido provada de forma trágica.

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva falhou tanto no planejamento de longo prazo quanto na execução de tarefas indispensáveis para qualquer tipo de plano.

Houve, inegavelmente, resultados positivos em algumas áreas. Conseguiu-se um avanço, embora modesto, na legislação da Previdência do setor público. A Lei de Falências foi aprovada. A política monetária foi conduzida com independência e manteve o controle da inflação, embora, segundo alguns, a um preço mais alto que o necessário. O esforço fiscal prosseguiu, mas sem a audácia necessária para a reforma do orçamento e para uma efetiva racionalização de gastos.

Mas os controles orçamentários foram executados sem atenção a prioridades materiais. Verbas foram contingenciadas sem se levar em conta as necessidades básicas de cada setor. Gastou-se mais do que o necessário em algumas funções e muito menos em outras. Tudo tem passado como se a direção de uma empresa aérea decidisse economizar, sem distinção, na comida e na bebida de bordo, na roupa das comissárias, nos gastos com agências de passagens, na manutenção dos aviões, no combustível e na qualificação dos pilotos. Urucubaca é isso