Título: O equívoco do referendo
Autor: Germano Rigotto
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/10/2005, Espaço Aberto, p. A2

Nossa Constituição federal estabelece três modalidades de exercício da democracia direta. São elas: a iniciativa popular para apresentação de projetos de lei; o plebiscito, que é um mecanismo pelo qual a maioria da opinião pública determina previamente como certos temas devem ser tratados por lei que virá a ser elaborada; e o referendo, no qual o povo se manifesta sobre algo que já foi deliberado pelo Parlamento, para dizer se concorda ou não. A sociedade brasileira, pelo preceito da obrigatoriedade do voto (um outro tema que poderia ser objeto de consulta ao cidadão), está sendo convocada a opinar, em referendo, sobre a proibição do comércio de armas de fogo e munições, estabelecida no artigo 35 do Estatuto do Desarmamento. Assim como creio que os instrumentos de democracia direta - o referendo entre eles - são válidos e úteis para a tomada de certas decisões, estou convicto de que, neste caso específico, estamos perante grave equívoco do legislador nacional. Primeiro, ele fixou regras severas para o registro de armas, no que andou muito certo. Depois estabeleceu critérios ainda mais restritivos para o porte de armas, no que andou igualmente certo. E, no final do Estatuto, em seu artigo 35, desfez tudo que tinha feito, proibindo a comercialização de armas de fogo e munição em todo o território nacional, aberta exceção para aqueles a quem autoriza o porte de arma. Cabe aqui a pergunta do sambista: "Se foi pra desfazer, por que é que fez?" Se era para impedir totalmente a comercialização, por que estabelecer regras para a aquisição, posse e o registro?

Trata-se de algo realmente paradoxal e incompreensível. É coisa sabida que quem proíbe o acesso aos meios impede a realização dos fins. Se o comércio fica proibido, desaparece o direito de aquisição. Que fique claro, portanto: o referendo que se realizará amanhã surge no parágrafo 1º do artigo 35 em razão dessa ambigüidade admitida pelo legislador. Não pretendo, aqui, entrar no mérito do que estará sendo decidido neste domingo. Interessam-me as condições para que o cidadão decida bem, porque a eficiência e a eficácia dos instrumentos de democracia direta implicam, necessariamente, o cabal esclarecimento do eleitor. Caso contrário, ele pode ser induzido a uma opção equivocada. A democracia não é algo que se defina pela mera disponibilidade dos mecanismos de decisão, mas depende, também, dos meios de informação e da qualidade das informações que são recebidas pelo cidadão.

O referendo surge, então, de um erro e se desenvolve numa sucessão de equívocos. É um equívoco a pergunta posta ao eleitor, na medida em que está formulada pelo avesso do tema central, e é um equívoco a campanha, que se desenrola em tons e estratégias inúteis ao esclarecimento da população sobre o tema em debate.

O Estatuto do Desarmamento, em sua essência, dispõe sobre os direitos de ter e de portar armas de fogo e essa é a questão sobre a qual se justificaria a convocação de um referendo porque é o tema que, objetivamente, envolve direitos e deveres dos cidadãos. A comercialização de armas constitui matéria secundária perante o muito maior significado ético e jurídico da questão central. Tanto é assim que os próprios programas de rádio e TV se voltam para esse conteúdo, sinalizando preceitos morais, exemplos práticos, experiências internacionais e desfiando dados estatísticos para corroborar cada uma das teses em contraposição. No entanto, ainda que tal fosse o foco do referendo e a pergunta estivesse bem formulada, dificilmente chegaríamos a um cabal e prévio esclarecimento da sociedade em tão pouco tempo e com uma publicidade conduzida com o intuito de seduzir pela emoção e de convencer a qualquer custo, inclusive pela visível manipulação de informações falsas e estatísticas pouco confiáveis. Tanto isso é assim que a própria Justiça Eleitoral tem intervindo para coibir a divulgação de peças de propaganda que torcem a verdade.

Lamentavelmente, é isso que está acontecendo, de parte a parte. Por certo, questões de natureza técnica, jurídica e moral não ficam em boas mãos quando sua abordagem perante a opinião pública é confiada a pessoas sem domínio daquilo que será submetido ao discernimento do eleitor.

Não é assim que se lida com esses assuntos. O referendo está produzindo um desvio do foco através do qual a sociedade poderia estar sendo mobilizada em relação à violência e suas causas. Os instrumentos de democracia direta devem ser sempre pedagógicos e servir à formação de uma cidadania esclarecida e participativa. Neste caso ocorre exatamente o contrário. De um lado, tudo se passa ao largo do tema central da segurança pública, do combate à criminalidade, da falta de recursos humanos e materiais para esse enfrentamento, dos desajustes sociais, da banalização do mal e do relaxamento moral. De outro, tudo é apresentado sob o enfoque da defesa pessoal e do revide individual. Pode alguém, em sã consciência, supor que seja isso que está, de fato, interessando ao povo brasileiro? Como encontrar, sob condições tão adversas, a lucidez necessária para uma correta deliberação coletiva?

Por fim, vale lembrar que os cerca de R$ 600 milhões gastos com a realização do referendo são a metade do que seria necessário para zerar o déficit prisional do Brasil, 40% mais do que estava previsto no orçamento da União para segurança pública neste ano e cinco vezes mais do que foi efetivamente despendido até agora. E, como se viu, nem sequer está servindo para proporcionar aos cidadãos um esclarecimento confiável.