Título: Corrupção e privatização
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/10/2005, Espaço Aberto, p. A2

Três partidos da base aliada (PT, PCdoB e PSB) divulgaram na sexta-feira passada nota em que denunciaram a existência de uma "... corrupção sistêmica no Estado brasileiro, acelerada nos últimos anos pelas privatizações selvagens, comandadas pelo governo FHC, e pelos financiamentos ilegais das campanhas eleitorais". Esse trecho tem quatro afirmações. Delas se salvam a primeira e a última, ainda que esta seja incompleta, pois há outros motores da corrupção além dos financiamentos ilegais de campanha. Fica também no plano do discurso, pois a constatação não acompanha empenho em coibir tais financiamentos, nem em punir os que cometeram tais ilegalidades. A referência ao governo FHC retoma a antiga prática petista de atacá-lo, a qual perdera vigor desde a eleição de Lula, pois o que realmente interessou ao partido foram o exercício e as benesses do poder. Agora, como a prioridade é a defesa diante de pesadas acusações, o hábito de atacar é estrategicamente retomado. Já a segunda afirmação é por si mesmo corrupta, pois é indefensável afirmar que a corrupção do Estado brasileiro foi acelerada pelas privatizações.

Que há corrupção no governo não é novidade, pois desde que me entendo por gente são freqüentes as notícias e as percepções de sua existência. Contudo, quanto à corrupção acelerada de que fala a nota, se a prática for medida em notícias de corrupção por unidade de tempo e pela extensão deste, a percepção é de que os últimos meses do governo petista foram recordistas. Em contraste com essa velocidade, o que anda devagar são as punições dos culpados, num processo que se revela também ineficaz sob outro aspecto, ao permitir que alguns deles escapem de uma das punições (a cassação) mediante conveniente renúncia ao mandato, com tudo aparentemente terminando por aí. Isso apesar dos delitos cometidos, cuja gravidade o PT procura aliviar, menosprezando a ilegalidade de práticas como o uso do "caixa 2", com um conceito de moralidade aplicável apenas a desafetos políticos.

Em qualquer caso, não há como demonstrar que a corrupção no Estado brasileiro tenha sido acelerada pelas privatizações, e é fácil argumentar em sentido contrário. Assim, o noticiário sobre os escândalos recentes começou com os surgidos nos Correios e no IRB-Brasil Resseguros, duas empresas estatais. Na mesma linha, vieram também denúncias envolvendo a estatal Furnas e a "doação" de veículo a um ex-dirigente petista feita por empresa a serviço de outra estatal, a Petrobrás. Há também investigações em curso para examinar indícios de má gestão de fundos de pensão de empresas estatais.

Tudo segue uma lógica, pois a teoria econômica apresenta várias razões pelas quais as estatais são, de modo geral, mais mal administradas e mais sujeitas à corrupção que as empresas privadas. Ao contrário de uma empresa deste tipo, na estatal o lucro e a eficiência não são os objetivos prioritários, pois há outros que muitas vezes se sobrepõem, como o de crescer por crescer e o empreguismo. A mudança freqüente de administradores, cujo bom desempenho não é cobrado como na empresa privada, e o uso político das estatais também abrem mais espaço à ineficiência e à corrupção.

Sintomático desse uso distorcido das estatais pelos políticos é que nelas as diretorias de compras usualmente despertam maior interesse, ao contrário das empresas privadas, onde as de vendas conferem maior prestígio. Note-se que nos casos dos Correios e do IRB as denúncias atingiram responsáveis por áreas como "contratação de materiais" e de pagamentos de comissões por serviços prestados. E se sabe também que o chamado "valerioduto" se abastecia a partir de empresas de publicidade que prestavam serviços a estatais.

A privatização no governo FHC teve aspectos vulneráveis. Entre outros, o mau uso dos recursos arrecadados, que se perderam no buraco fiscal aberto com a política de câmbio baixo e juros altos. Nessas condições, a redução da dívida que veio com esses recursos abriu espaço para um endividamento ainda maior. E se perdeu também uma grande oportunidade para democratizar o capital, mediante maior oferta pública e troca de ações de estatais por depósitos dos trabalhadores no FGTS, uma providência coberta de êxito, mas infelizmente só adotada no final do governo FHC e em pequena escala. Outros créditos que a população tem com o governo, como os recebíveis de aposentadorias devidas pelo setor público, também poderiam ter sido objeto de troca.

Do lado dos ganhos, há estudos mostrando que, em geral, as estatais privatizadas no Brasil melhoraram seu desempenho, conforme demonstrado por indicadores de rentabilidade e de produtividade. De qualquer forma, em retrospecto e à luz dos escândalos que marcam o governo Lula, um dos maiores ganhos da privatização foi o de reduzir sensivelmente o número de empresas estatais, diminuindo assim o espaço para má gestão e corrupção no governo. Com a privatização realizada, o País foi poupado dos desastrosos resultados de centenas de diretores que seriam nomeados por indicações políticas, mais os cargos de confiança que preencheriam com seus apadrinhados. Com isso a rede de propinodutos efetivos ou potenciais é hoje menor.

O certo é que, quanto menos estatais houver, e quanto mais os seus quadros forem profissionalizados, cobrados pelo seu desempenho e blindados contra indicações políticas, menor será a margem para a corrupção no Estado brasileiro. Assim, não há como culpar as privatizações pela corrupção acelerada de que fala a referida nota. Se há uma privatização a ser culpada, ela veio do empenho petista em pôr o Estado brasileiro a reboque dos interesses privados do partido e ao arrepio do servir ao bem comum, que deve ser a marca de um Estado republicano.