Título: As lições do professor Lula
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/10/2005, Notas e Informações, p. A3

Como já fez em outras viagens internacionais, em Moscou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva proclamou que "acabou o tempo em que o negociador brasileiro ia de cabeça baixa pedir favor a alguém". Agora, pelo visto, o negociador brasileiro - no caso o próprio presidente Lula, que também acha que, com "olho no olho" resolve qualquer problema - vai com a cabeça nas nuvens ensinar a seu interlocutor o caminho das pedras. Só o excesso de adrenalina explica que o presidente Lula tenha pretendido lecionar para Vladimir Putin - ex-chefe da KGB e atual presidente da segunda maior potência militar do planeta - que Brasil e Rússia devem formar uma aliança não apenas comercial, mas "estratégica", para que os países em desenvolvimento "não sejam tão dependentes da União Européia e dos Estados Unidos". Se Putin fosse dado a tiradas bem-humoradas, certamente teria respondido: "Tarde piaste." O conselho poderia encontrar eco junto ao presidente da União Soviética, que confrontava o Ocidente, jamais com o presidente da Rússia, que está em bons termos econômicos e políticos com os Estados Unidos e a União Européia. Afinal, são os países altamente desenvolvidos que têm os capitais e as tecnologias de que a Rússia necessita para seu desenvolvimento.

Mas o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ocupado em executar uma política externa de cunho marcadamente ideológico, não se detém diante de minúcias como aquelas. "Nesse mundo globalizado", disse ele, "não há Papai Noel. Ninguém dará presente ao Brasil e ninguém dará presente à Rússia. Essa é uma disputa de conhecimento, de capacidade produtiva, de competitividade. Nessa disputa, nós temos que procurar os parceiros mais próximos de nós." E foi o que fez a Rússia, que o presidente Lula considera um "parceiro estratégico".

Na questão da carne, por exemplo, que consumiu parte do esforço presidencial em Moscou, a Rússia concedeu aos EUA e à União Européia, há cerca de dois anos, generosas cotas de exportação. Ao Brasil, nada. E, agora, acena com a perspectiva de estabelecer uma cota em 2010, havendo a alternativa da criação de uma tarifa para as importações de carne brasileira. Em matéria de defesa dos interesses nacionais - no caso, os russos -, o presidente Lula pregou para convertidos.

Com o mesmo tom superior com que pregou a união contra a hegemonia americana e européia, Lula repreendeu os brasileiros. Para ele, "o mundo tratou (o problema da aftosa em Mato Grosso do Sul) com muito mais seriedade do que determinados setores dentro do próprio Brasil". Reclamou do alarde que aqui se fez a respeito do surto da doença, que tratou de minimizar: "Não são 200 cabeças de gado (infectado) que vão jogar por terra 200 milhões de cabeças."

Lula continua não compreendendo, primeiro, que o seu governo tem responsabilidades diretas no episódio e, segundo, que quaisquer surtos de doenças em animais destinados ao consumo humano, por menores que sejam, abalam fortemente o mercado, especialmente após a epidemia do mal da "vaca louca". Para isentar o seu governo das clamorosas falhas do setor de vigilância sanitária, o presidente já tentou responsabilizar exclusivamente os proprietários das reses infectadas. Como até o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, reconhece que o governo também é culpado pelo reaparecimento da aftosa e recomenda que essa responsabilidade seja claramente assumida, o presidente Lula tenta jogar o ônus sobre "setores dentro do próprio Brasil", como se o caso não tivesse repercussão internacional.

Quando Lula fez essa infeliz declaração, já estava impresso no diário londrino Guardian artigo assinado por George Monbiot, em cuja chamada se lê: "Se é antiético comer carne britânica, é cem vezes pior comer carne brasileira." E segue-se uma diatribe que mistura alhos com bugalhos, como sempre ocorre quando quem pretende demonstrar uma tese não tem conhecimentos mínimos sobre o assunto tratado. Assim, 80% da carne brasileira é produzida na Amazônia e ela é barata graças à quintuplicação do trabalho escravo nos últimos dez anos. Como o Itamaraty tarda - quando o faz - a repor a verdade, cria-se na opinião pública internacional não o alarido, mas o alarme que justifica a suspensão das compras da carne brasileira. Lá como cá, presidente Lula, alarde há.