Título: Cidadania, o lugar dos afro-brasileiros
Autor: Miguel Jorge
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/10/2005, Espaço Aberto, p. A2

País de estrutura social complexa, abalado por desigualdades e injustiças, o Brasil miscigênico festeja em 20 de novembro o Dia da Consciência Negra tentando lançar um olhar mais atento sobre o fato mais importante da sua identidade: a presença do negro como fator de diversidade, aglutinação e riqueza de sua sociedade. Para onde quer que olhe à procura de si mesmo, de suas raízes, história e cultura, o brasileiro branco tem de encarar o fato de que os afrodescendentes se inscrevem em sua vida e na do País, não somente pelo perfil racial como por sua contribuição em todas as áreas que forjaram o que somos hoje. Em tudo o que fazemos e em tudo o que somos, o negro é parte fundamental dessa realidade social e econômica, das raízes culturais, do exercício da liberdade criadora, da convivência humana.

Essa realidade se torna mais confusa quando sabemos que é exatamente do cadinho racial de seu povo - afrodescendentes, japoneses, eslavos, italianos, portugueses, alemães, libaneses, etc. - que o Brasil tropical extrai a maravilhosa síntese da sua unidade como sociedade democrática e multirracial.

Contudo, paradoxalmente, o autor destas linhas - branco, mistura de italianos e libaneses - não ousa explicar uma tragédia: a de que os negros ou afro-brasileiros têm motivos mais que suficientes para se sentirem excluídos dessa sociedade ou em posição inferior em relação aos não-negros e até mesmo para duvidar daqueles que dizem que lutam por eles.

O que primeiro vem à mente é que, a cada momento eleitoral, seus votos são valiosos nas barganhas políticas. O Brasil tem a maior concentração de negros do planeta, perdendo somente para a Nigéria, o que mostra a importância do 20 de novembro na luta pela melhoria de vida dos negros.

Mas, embora representem 48% da população brasileira, segundo dados do IBGE, os negros - aqui, incluídos os pardos, mulatos e outros - são somente 1% dos que ocupam postos estratégicos no mercado de trabalho. Ganham, em média, a metade do que recebem os trabalhadores brancos e são as maiores vítimas da criminalidade e da violência.

Basta isso para mostrar que, se integração social, com oportunidades iguais, é requisito básico para o desenvolvimento, e se diversidade racial é um tesouro do qual nos deveríamos orgulhar, temos fracassado na tarefa de resgatar a população negra para a cidadania.

O Brasil nunca tratou a sério o anseio dos negros de mandar seus filhos à escola. Ou de vê-los ocupando bons empregos, com salários dignos. De fazê-los se sentirem cidadãos por inteiro, em harmonia com a liberdade que o País oferece a outros segmentos da sua população.

Diz-se que o brasileiro não é racista, mas essa afirmação provoca imensas dúvidas em qualquer observador razoavelmente atento. Nem se fale da surpresa de ver um negro com curso superior, exercendo "profissão de doutor" e prosperando com o seu trabalho, e mais ainda com um MBA.

Quantos leitores já foram atendidos por um garçom negro num restaurante considerado "de classe"? Ou foram atendidos por um recepcionista negro num hotel cinco-estrelas?

As classes abastadas se surpreendem porque nunca conheceram e não têm a mínima idéia do que é ser negro, pobre e analfabeto num país onde as oportunidades de trabalho se fecham para quem não tem uma boa educação - e nosso sistema educacional privilegia, sobretudo, os filhos de famílias, no mínimo, da classe média e branca.

O que não surpreende é um negro trabalhar como carregador de malas no aeroporto ou como motorista de táxi, porque abandonou os estudos por problemas financeiros que o obrigaram a sustentar sua família mesmo com empregos de menor remuneração.

Dados do IBGE mostram ainda que, independentemente dos níveis de escolaridade, as taxas de desemprego em nossas grandes metrópoles são sempre maiores entre os negros (pretos e pardos) do que entre os não-negros (brancos e amarelos). Além disso, estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese) mostra que os negros têm salários mais baixos, ocupam cargos mais vulneráveis e passam mais tempo procurando emprego do que os não-negros. Mais vulneráveis, segundo os especialistas, são os cargos de empregados domésticos, na maioria autônomos - o porcentual de negros que se enquadram nessas ocupações é bem maior que o dos não-negros.

A causa provável disso não é apenas um eventual preconceito racial, mas também o fato de que permanecemos um século de olhos fechados e ouvidos moucos para esse segmento mais pobre da população - nossa herança escravagista se eternizou no tempo e, hoje, apenas se transforma. Na saúde pública, o cenário é também lamentável, como indica o aumento dos casos de aids entre a população negra, sobretudo a feminina.

Mas o mais irônico em tudo isso é que os negros brasileiros nunca reivindicaram a proteção dos governantes de turno, nem programas que os colocassem sob a égide do Estado, nem políticas públicas eficazes que criassem mais empregos, boas escolas e assistência médica, etc., com justa distribuição de renda e oportunidades. Não cobraram isso nem dos políticos negros que elegeram para cargos legislativos nos Estados e no Congresso Nacional.

Qualquer análise isenta da vida brasileira leva, portanto, à triste conclusão de que não atingimos esses objetivos e que, ontem e hoje, como afirma a pesquisadora Olívia Santana, da Universidade Federal da Bahia, "os negros continuam filhos bastardos de uma pátria-mãe pouco gentil".

Que o Dia da Consciência Negra assinale o passo inicial para que, irmanados, os governos federal, estadual e municipal, a sociedade, ONGs e sindicatos de trabalhadores e de empresários atenuem a situação deprimente do negro no País.