Título: Repúdio ao excesso de governo
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/10/2005, Notas e Informações, p. A3

Quem duvidar da influência decisiva que teve a imagem do governo Lula na estrondosa vitória do "não", no referendo deste domingo, deveria fazer-se a simples indagação: fosse outro o governo ou fosse outro o grau de confiabilidade popular dos que "produziram" o referendo sobre a proibição do comércio de armas no País - tornado obrigatório pelo Estatuto do Desarmamento - teria havido maioria tão esmagadora de eleitores (64% a 36%) repudiando a proibição? Observe-se que, se na oposição houve partidários tanto do "não" quanto do "sim", no governo federal e no PT não se descobriu ninguém que defendesse, pelo menos publicamente, um voto contrário àquela proibição. Dessa forma, o referendo ficou marcado como mais um grande equívoco - entre os inumeráveis - desse governo, embora não tenha sido produto de sua iniciativa. Claro está, porém, que a derrota do "sim" não derivou apenas disso. Na impressionante "virada" do eleitorado, cuja tendência de voto, detectada pelos institutos de pesquisa em agosto, beirava a 80% de favoráveis à proibição do comércio de armas, sem dúvida prevaleceu um repúdio geral a mais uma interferência governamental na vida dos cidadãos.

A publicidade desenvolvida pela Frente Parlamentar pelo Direito da Legítima Defesa - que esteve a cargo do marqueteiro Chico Santa Rita - soube perceber que o cidadão brasileiro, hoje mais do que nunca, repele o Estado (especialmente o mal gerido, diríamos nós) se imiscuindo em todos os cantos da vida privada. Neste sentido foi bem explorado o "direito da legítima defesa", mesmo em se sabendo que quem possui arma registrada e a guarda em casa não seria obrigado a devolvê-la, assim como os detentores de porte poderiam adquirir uma arma, caso vencesse - como venceu - o "não".

Por seu lado, a Frente Parlamentar Brasil sem Armas desenvolveu uma propaganda notoriamente enganosa, ora dando a entender que a proibição do comércio de armas no Brasil - onde é irrisório o número de cidadãos comuns possuidores de armas de fogo - haveria de reduzir nossos brutais índices de homicídio e criminalidade, ora deixando de considerar que, para cerca de 2 milhões de armas regulares no País, existem 20 milhões de irregulares, bem como desprezando a gritante circunstância de 70% das armas fabricadas no Brasil serem exportadas, 20% destinadas a instituições de segurança oficiais e 8,5% a empresas privadas de segurança - o que faria sobrar apenas 1,5% para os cidadãos comuns, pelo que careceria de sentido falar-se, como tanto se falou, do poderoso lobby dos fabricantes de armas brasileiros, na campanha em favor do "não". Igualmente enganosa pareceu a tentativa de atribuir a "defesa da vida" apenas aos adeptos do "sim" - como se os defensores do "não" fossem "a favor da morte"...

A aceitação popular do Estatuto do Desarmamento, que restringiu ao máximo o porte de armas, de alguma forma pôde ser antes medida pelo grande sucesso da campanha pela entrega de armas. Não houve contradição alguma entre isso e o repúdio ao artigo 35 daquele Estatuto, que proibia a comercialização de armas no território nacional. É que o eleitorado percebeu que não se tratava de opinar "sim" ou "não" ao Desarmamento - conforme pretenderam fazer crer os defensores do "sim" - pois em momento algum a medida destinada a eliminar o comércio regular de armas significaria um maior controle governamental da circulação de armas (antes, pelo contrário), uma fiscalização mais rigorosa do contrabando de armas e, muito menos, uma eficiência maior no combate aos altíssimos índices de criminalidade vigentes no Brasil.

Em sã consciência, quem achará que a imensa maioria da população brasileira, que repudiou a proibição ao comércio de armas, tem algo que ver com o insignificante número de cidadãos que possuem armas no País? E quem achará que os votantes do "não" correrão para adquirir suas armas, de agora em diante?

Na verdade, se houve algo de efetivamente positivo nesse grande equívoco do referendo - grande e caro, pois o Erário não tem R$ 270 milhões sobrando para desperdiçar - foi a maturidade do imenso eleitorado brasileiro, que soube consignar, com a maior firmeza, seus maiores repúdios: o repúdio à enganação e o repúdio ao excesso de intromissão do governo na vida dos cidadãos.