Título: 'Cassação se impõe para restaurar dignidade'
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/10/2005, Nacional, p. A5

Em 62 páginas, relator do processo sustenta que há evidências da participação de Dirceu na compra de votos de parlamentares

CASSAÇÃO DE MANDATO: "Recomendamos a aplicação da penalidade de perda de mandato ao deputado José Dirceu." EX-MULHER: "Bastou que que a senhora Ângela Saragoça pedisse ajuda ao ex-marido, o então todo-poderoso ministro da Casa Civil, José Dirceu, para que em aproximadamente três meses sua vida desse uma volta de 180 graus, ficando, pelo menos financeiramente, resolvida. Diante da participação de Marcos Valério nesses episódios da vida particular de José Dirceu, é inconteste a proximidade entre ambos." VALERIODUTO: "Para o deputado José Dirceu, o dinheiro destinado a esses pagamentos, proveniente do chamado valerioduto, é produto de empréstimos feitos pelo PT e pelo senhor Marcos Valério para pagar campanhas eleitorais. Mas, conforme disse o deputado Dirceu em entrevista, o problema é que não se quer aceitar essa tese. Ora, tese? Como tese? O deputado não deveria estar lidando com fatos? Fatos são todos verdadeiros. Tese, nesse caso, foi ato falho do deputado Dirceu, pois tese pode ser verdadeira ou falsa." BMG: "É importante lembrar que o senhor Marcos Valério e sua mulher, senhora Renilda Santiago, em depoimento à CPI dos Correios, afirmaram e confirmaram reuniões entre José Dirceu e dirigentes do Banco Rural e BMG. Marcos Valério ressaltou, em depoimento à Procuradoria-Geral da República, que os empréstimos para o PT feitos pelos Bancos Rural e BMG foram avalizados pelo então ministro José Dirceu." VOTAÇÕES: "Em junho de 2004, o valerioduto despejou R$ 247 mil nos cofres do PT. Entre janeiro e maio de 2004, tinham sido R$ 9.622.806,94. Nesse período, foram votadas no Congresso medidas provisórias que enfrentavam muitas resistências, como a do PIS-Pasep, do Cofins, da Biossegurança, da antecipação da Cide." TRANSGÊNICOS: "Outra história interessante rastreada no que está disponível na quebra de sigilo telefônico ocorreu em maio de 2003. No mês em que o governo conseguiu aprovar no Congresso a polêmica MP que liberou a comercialização da safra de 2003 que continha transgênicos, Marcos Valério faz, de Belo Horizonte, uma ligação para a presidência da Câmara. O presidente então era João Paulo Cunha (PT-SP). No dia seguinte, Marcos Valério faz outra ligação para João Paulo, dessa vez de São Paulo. Novamente, no dia 14, agora falando de Brasília, Marcos Valério telefona seis vezes para o diretório do PT, em São Paulo. Nesse mesmo dia, ainda de Brasília, Marcos Valério telefona para o Banco Rural. Ainda nesse dia 14 a MP dos Transgênicos foi aprovada." TELEFONEMAS: "No dia 15 de maio, já de volta a Belo Horizonte, Marcos Valério telefona para Delúbio Soares. E no dia 19 de maio, Marcos Valério faz nova sucessão de telefonemas, a partir de São Paulo: para o diretório nacional do PT, para Delúbio Soares, para a presidência da Câmara, para a MultiAction, uma de suas empresas, e para os Bancos Rural e BMG. Em maio, de acordo com o cruzamentos de dados da CPI dos Correios, o valerioduto derramou R$ 750 mil no PT e R$ 250 mil no PTB. Ao todo, naquele mês, foram identificados 29 telefonemas de Marcos Valério para o Rural e o BMG, para a presidência da Câmara, para Delúbio e para o diretório do PT." NOVOS TELEFONEMAS: "A CPI dos Correios detectou, em setembro de 2004 a junho de 2005, mais de 240 ligações entre a sede nacional do PT e a SMPB, localizada em Belo Horizonte." "INOCÊNCIA": "Sobre a denúncia constante da representação apresentada pelo PTB, declarou o deputado José Dirceu, durante seu último depoimento a este conselho: 'Estou cada vez mais convencido de minha inocência.' Como se inocência tivesse gradações variadas. Inocência é inocência. Culpa é culpa. Ou o senhor Dirceu é inocente ou culpado. No depoimento ele afirma que responderá no Supremo Tribunal Federal por crime de responsabilidade, por improbidade administrativa, por qualquer outro crime. Então, sua inocência não estaria tão clara assim?" DEFESA: "Falando em sua defesa, o deputado Dirceu se embasa nas declarações de Delúbio Soares, dos bancos, da senhora Renilda e do senhor Marcos Valério para afirmar que nunca levantou fundos junto aos bancos. Mas não confere credibilidade a Marcos Valério e à senhora Renilda quando esses afirmam que ele sabia dos empréstimos e que, por isso, haveria uma garantia de que tais empréstimos seriam quitados junto ao senhor Valério. Delúbio nega tal fato, mas não podemos esquecer que por mais uma coincidência deste processo, ele é uma pessoa de confiança do representado (Dirceu)." COINCIDÊNCIAS DEMAIS: "A maioria dos nomes dos sacadores (do dinheiro) é de parlamentares ou de pessoas ligadas a eles, e as datas de liberação de recursos coincidem com as votações de interesse do governo na Câmara. Somente o BMG emprestou ao PT R$ 2,4 milhões, em 17 de fevereiro de 2003, e R$ 40,4 milhões às empresas de Marcos Valério, entre 2003 e 2004. Esses R$ 40,4 milhões também teriam sido repassados ao partido. Em 20 de fevereiro de 2003, três dias depois do primeiro empréstimo ter sido concedido pelo BMG, a diretoria do banco teve uma audiência com o então ministro da Casa Civil, José Dirceu. E aÍ, outros três dias depois, em 24 de fevereiro de 2003, a SMPB, a empresa de Marcos Valério responsável pela maioria dos saques no esquema de caixa 2, fechou a primeira operação financeira com o BMG, no valor de R$ 12 milhões." KÁTIA RABELLO: "A senhora Kátia Rabello, presidente do Banco Rural, respondeu assim quando indagada sobre se o deputado José Dirceu tinha conhecimento do empréstimo feito pelo Banco Rural ao PT: 'Do meu conhecimento, não, mas não posso falar pelos demais dirigentes do Banco Rural.' Segundo a senhora Kátia Rabello, esse empréstimo, de R$ 3 milhões, concedido em maio de 2003, é bastante normal, com juros de mercado, e de uma quantia relativamente pequena em relação aos ativos do banco. Mas é importante notar que eSsa foi a primeira vez que o banco celebrou empréstimo diretamente com um partido político." ANTECEDENTES: "Em 1988, Marcos Valério já havia se utilizado do expediente de solicitar empréstimos ao Banco Rural para abastecer campanhas políticas, mas não conseguiu pagar a dívida de R$ 9 milhões. Por isso, o banco celebrou um acordo com o devedor: recebeu R$ 2 milhões e o restante seria pago em serviços de publicidade." GARANTIAS: "Esses empréstimos podem ter sido boas garantias para intensificar tais relações bem-sucedidas e que frutificaram até o Planalto. No pretérito beneficiaram o PT, sendo judicioso ao conceder empréstimos que o Banco Central determinou o provisionamento dos mesmos por descumprimento de normas regulamentares." BENEFÍCIOS: "Conforme noticiado na imprensa e já averiguado pela CPI dos Correios, Rural e BMG tiveram pontuais benefícios no governo Lula. O BMG, por exemplo, lidera o mercado de crédito consignado para aposentados do País. E o histórico dessa operação deixa algumas dúvidas quanto à lisura do processo. Como é do conhecimento, em 17 de fevereiro de 2003, o BMG concede empréstimo de R$ 2,4 milhões ao PT. Três dias depois, a diretoria do banco é recebida por José Dirceu. Alguns meses depois - 18 de setembro - o governo edita medida provisória que permite instituições financeiras diferentes daquela onde o cliente tem conta operarem com o crédito consignado, 'evidentemente, para aumentar a concorrência', como explicou o deputado Dirceu ao Conselho de Ética. No caso do nicho voltado aos aposentados, o BMG foi o primeiro banco privado a fechar o acordo, com uma vantagem de cinco meses sobre os demais interessados. Depois de entrar nesse ramo, o BMG cresceu 233% e passou a figurar entre as 50 maiores instituições financeiras do País." FUNDOS DE PENSÃO: "O Rural viu os investimentos dos fundos de pensão de estatais crescerem em sua carteira, conforme informado pelo deputado Carlos Sampaio durante depoimento da senhora Kátia Rabello. No caso do Petros, o fundo da Petrobrás, não havia qualquer investimento no banco durante o governo passado." TRAJETÓRIA: "Como líder estudantil, José Dirceu tornou-se referência para ideólogos da esquerda. Como comandante do PT, construiu a organização e assumiu, juntamente com os integrantes do Campo Majoritário, o controle hegemônico do partido, que era admirado por defender a ética na vida pública e por possuir a mais poderosa máquina partidária no País." DECADÊNCIA: "E o meio pelo qual se buscava esta hegemonia era através da liberação de pagamentos em dinheiro vivo a parlamentares da base aliada, em períodos em que ocorriam votações de medidas importantes para o governo. Tudo leva a crer que a alta cúpula do PT levou para dentro do governo Lula dois conceitos marxistas: que os fins justificam o uso de meios reprováveis e que o partido está acima do Estado." ARQUITETO: "A denúncia que chegou a este conselho é de que o grande arquiteto deste espetáculo de corrupção seria o poderoso homem forte do governo e principal comandante do PT, José Dirceu de Oliveira e Silva. A lógica humana nos permite, através do acúmulo de evidências irrefutáveis, afirmar que José Dirceu tinha poderes para ser o autor intelectual de todo este esquema ou, pelo menos, poderes suficientes para impedir que tais práticas prosperassem." FAUSTO: "A antiga lenda de Fausto, aquele que negociou com o diabo para receber em troca poderes sobre-humanos, se resume no fato de ele ter perdido a noção de seus limites. É isto que temos constatado ao longo deste processo. A ausência total de limites e a crença infundada de que a manutenção do poder permite quaisquer tipos de ilicitudes, colocando homens acima do bem ou do mal." TRANSFIGURAÇÃO: "Aquele senhor José Dirceu, que era líder estudantil revolucionário da chamada geração de 68, que lutou bravamente contra a ditadura militar, que foi treinado pela inteligência cubana, que viveu clandestinamente no Brasil e construiu o maior partido de esquerda do País, não é mais o mesmo. Esse fenômeno de transfiguração ética pelo deslumbre exercido pelo poder político não é novidade. Maquiavel o conhecia e o explicava de maneira magistral: 'Daí a conveniência de parecer clemente, leal, humano, religioso, íntegro e, ainda de ser tudo isso, contanto que, em caso de necessidade, saiba tornar-se o inverso'." PRINCIPAIS PONTOS DO VOTO

A íntegra do voto do relator em:

www.estadao.com.br Num texto de 62 páginas, que inclui seu relatório e seu voto no Conselho de Ética, Júlio Delgado (PSB-MG), relator do processo contra José Dirceu (PT-SP), procurou demonstrar que já foram reunidos fatos e evidências mais do que suficientes para comprovar a participação do deputado petista no esquema de compra de votos de deputados - o chamado mensalão.

Com ironias, frases contundentes, citações do Fausto e até de Maquiavel, o relator insistiu em que seu colega mostrou desprezo por qualquer tipo de norma ética e de decoro parlamentar, que deveria ter respeitado mesmo no cargo de chefe da Casa Civil. O petista teria agido movido pela "crença infundada de que a manutenção do poder permite quaisquer tipos de ilicitudes, colocando homens acima do bem e do mal".

Ele ironizou uma das frases que Dirceu usou em sua defesa, dizendo que estava cada vez mais convencido de sua inocência: "Como se inocência tivesse gradações variadas. Inocência é inocência. Culpa é culpa. Ou o senhor Dirceu é inocente ou culpado. No depoimento ele afirma que responderá no Supremo Tribunal Federal (STF) por crime de responsabilidade, por improbidade administrativa, por qualquer outro crime. Então, sua inocência não estaria tão clara assim?"

Delgado também disse que o o Dirceu "revolucionário da chamada geração de 68, que lutou bravamente contra a ditadura militar, que foi treinado pela inteligência cubana, que viveu clandestinamente no Brasil", não existe mais. "Esse fenômeno de transfiguração ética pelo deslumbre exercido pelo poder político não é novidade."

Ao final, o relator defendeu a cassação de Dirceu, enfatizando que ela "se impõe como meio de restaurar a dignidade e a credibilidade do voto nesta Casa". A seguir, alguns dos principais trechos do voto de Delgado.