Título: Referendo em debate, muito além da divisão entre bem e mal
Autor: Bruno Paes MansoEduardo Nunomura
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/10/2005, Metrópole, p. C1

A principal incógnita do referendo é o dia seguinte. Vencendo o sim ou não, os bandidos ainda vão agir, as pessoas continuarão com medo de assaltos e o problema da violência no Brasil vai permanecer grave. Se é assim, por que um referendo? "O que estamos decidindo é se vamos tirar ou não uma folha de louro da feijoada", diz o coronel José Vicente da Silva Filho, um especialista de segurança. Para o coronel, os eleitores do sim, como ele próprio, votarão com ceticismo, conscientes de que sua escolha ajuda na redução da violência, mas é um detalhe se comparado com outras medidas. Como a folha de louro.

A convite do Estado, José Vicente participou de uma conversa de quase três horas com o jornalista Reinaldo Azevedo, diretor da revista Primeira Leitura e eleitor do não. Mesmo em campos opostos, os dois chegam às urnas com mais pontos em comum do que contraditórios. Querem distância da bancada da bala e dos discursos da turma do "paz e amor".

Ambos criticam os R$ 270 milhões gastos para a realização do referendo, que representam 12 vezes mais que o orçamento executado neste ano para o Fundo Nacional de Segurança Pública. O fundo é um mecanismo de distribuição de recursos para programas estaduais e municipais de segurança. "Se tivéssemos investido R$ 270 milhões em iluminação pública, obteríamos efeitos sobre a criminalidade maiores que o referendo", diz o jornalista.

Os dois preferem aprofundar discussões que passaram longe das campanhas do sim e do não, que muitas vezes optaram por satanizar um lado ou outro. As diferenças entre eles, como mostra a conversa, são sutis. A ponderação que marcou o debate pode ajudar o eleitor ainda indeciso a escolher de maneira menos apaixonada o seu voto. Eles acreditam que a sociedade não é só preto ou branco, como afirma o coronel.

RAZÕES DO VOTO

1.O Estado não tem o direito de dizer se posso ou não me defender. Senão daqui a pouco ele vai me dizer que não posso comer chocolate porque engorda e bacon porque entope as veias do coração e dão problema de saúde pública. O Estado não pode me proibir de reagir.

2. A minha preocupação é com as próximas gerações. Minha geração está deixando uma péssima herança para os jovens. Se votarmos pelo não, vamos manter rigorosamente o status quo. Não sabemos se algum governo vai tomar a decisão decente de colocar a questão da violência como prioridade. Mas diminuir o acesso a armas é uma medida que pode somar. Aquela idéia de que "o brasileiro é tão bonzinho", como dizia Kate Lyra, não é verdade. A arma para nós é mais mortal.

VOTO DE COBRANÇA

2. Precisamos dar algum passo. Não é o governo dizendo que estamos concluindo ou iniciando um processo. Peraí, estamos avançando a nossa pedra e dizendo: "Ô, Lula, sua vez." A sociedade jogou o seu peão, agora é a sua vez, vamos chamar o rei para o jogo. O sim vai sinalizar para o cidadão que tem arma ilegal, a grande quantidade que está matando vizinhos, que esse troço é proibido. Há um forte aspecto simbólico na decisão.

PERDA DE DIREITOS

2. Não podemos achar que a arma é a melhor solução, até porque ela não é. Não vejo como um direito premente que está sendo negado, porque essa é uma aspiração de um grupo de pessoas que tem medo e acesso às armas. E quem tem medo e não pode ter acesso? Tem-se a impressão de que ter uma arma em casa vai afastar o Exu, os maus espíritos.

1.Discordo. Estão tirando um direito à autodefesa. O que acontece se estou na minha casa, obedeci ao Márcio Thomaz Bastos, entreguei minhas armas, o sim venceu, estou proibido de comprar uma arma, e entra um bandido no meu quintal? Em circunstâncias normais poderia dar um tiro para o alto. Se o sim vencer, só me resta abrir a porta, cumprimentar o ladrão e torcer para que ele seja generoso comigo.

MEDO

2. Habilmente, ou sem intenção, o não veio com argumentação do medo. O cidadão está em casa e ouve um ruído no quintal. Todo mundo gela. É uma coisa que vem do tempo das cavernas. Esse grande medo se espalhou. Esses propagandistas sabem que quando mexem nesses fundamentos do inconsciente coletivo têm chance de pegar o peixe no anzol. Mas é raro, felizmente, alguém morrer em casa vítima do ladrão.

1.Não é só uma questão de fundo psicológico. É fácil responder à questão do medo: com civilização, evolução da caverna. Se a polícia atuasse, tivesse um histórico de resoluções de casos, tudo bem, mas existe uma constatação clara de que não adianta, porque o Estado não vai aparecer.

A VIRADA DO NÃO

1.Não pode ter havido uma mudança de opinião de 30 pontos porcentuais em três semanas. Por que os números mudaram? Antes da discussão na TV, era como se houvesse os que seriam favoráveis à vida e os favoráveis à morte. O não era demonizado. Não houve virada, mas uma melhor percepção do que está sendo votado.

2.O problema é complexo e foi reduzido a preto no branco, sim e não. Além disso, o sim quer dizer não e o não quer dizer sim. Até a Igreja Católica fez um folheto errado. Infelizmente, a população vai com muita dificuldade e até eu estou com dificuldade.

CHICO BUARQUE

1.A linguagem desastrosa da campanha do sim repetiu a da campanha do presidente Lula, seja pela presença dos artistas, pela pregação politicamente correta do somos todos a favor do bem. Evidentemente não se faria um referendo para que as pessoas tenham direito de matar. Essa questão é falsa. É curioso que o senhor Chico Buarque apareça dizendo vote sim, vote na vida, quando ele é o maior propagandista da América Latina do regime cubano, onde as pessoas são executadas sem nem ter direito de defesa. A defesa dele não é de princípio, mas de caráter político.

ARISTOCRACIA DA ARMA

2. Sabemos que o direito de comprar uma arma não sai por menos de R$ 1 mil, incluindo arma, licença, treinamento, psicológo, taxas. Vencendo o não, a classe média alta vai poder comprar. E a classe média pensará: se os bacanas podem, vou comprar a minha enferrujada, um 38, na feira do rolo. A expectativa do sim, do "está proibido", é que isso chegue até as periferias e haja um desarmamento delas.

1.Se o sim vencer, vamos criar a aristocracia da bala. As empresas de segurança vão deixar de existir? Os megaempresários deixarão de andar com suas escoltas armadas? Os artistas deixarão de andar com seus seguranças armados? É mais ou menos como declarar a extinção da escravatura, menos para aqueles que já têm escravos.

ALDO REBELO X BOLSONARO

1.Ninguém fala do Aldo Rebelo. Ele defende a guerrilha do Araguaia, o socialismo e faz essa defesa sobre uma montanha de cadáveres. Sou antifascista e anticomunista. O (Jair) Bolsonaro não é meu aliado. O (Luiz Antônio) Fleury, o (Alberto) Fraga, o coronel dos 111 (Ubiratan Guimarães) não são meus aliados. Não tenho absolutamente nada a ver com essa gente. Eu não tomo café com eles. O Raul Jungmann é meu interlocutor, mas acho que ele está errado. Não quero ser demonizado, nem ser chamado de partidário da bancada da bala.

GOVERNOS

2. A Secretaria Nacional de Segurança Pública teve sua estrutura cortada quase pela metade, enquanto se cria uma Secretaria da Pesca para defender o salmão chileno com cinco vezes mais cargos. Isso é medida de prioridade. O referendo ficou assim: "Olha, como não estamos fazendo nada para a segurança de vocês, votem para que decidam alguma coisa porque eu não estou conseguindo decidir." O presidente Fernando Henrique Cardoso também disse que um dos grandes arrependimentos dele foi não ter feito maiores investimentos em segurança pública. Lamentavelmente o pensamento de esquerda, um dos grandes patrocinadores do sim, tem certa urticária quando se fala de força de segurança, polícia, militares.

CRIME ORGANIZADO

1.As áreas do tráfico continuarão intocadas. Como pode um Estado em que dois ministros sobem o morro, então Ricardo Berzoini (Trabalho) e Gilberto Gil (Cultura), fazem um acordo com o crime organizado para lançar um programa inexistente de primeiro emprego e são obrigados a deixar a sua segurança no asfalto?

2. O crime organizado é tanto mais forte quanto mais desorganizado o Estado. As ações espetaculares, tipo Rambo, nunca deram resultado. Não temos um trabalho de inteligência. A Polícia Federal está mais preocupada em prender médios corruptos, que é mais fácil que pescar lambari na piracema do Pantanal. Nossas fronteiras estão abertas.