Título: Sim e não dividem famílias nas urnas
Autor: Adriana Carranca, Cristina Ribeiro e Nilson Brandã
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/10/2005, Metrópole, p. C3

Se os números das pesquisas mais recentes mostram um provável resultado apertado no referendo de hoje, em algumas famílias essa divisão está presente desde o início do debate. Pessoas com afinidades políticas ou que compartilham gostos e tendências tomam rumos diferentes quando o assunto é a proibição do comércio de armas e munição. Reproduzem em casa o que será visto hoje, em todo o País. A decoradora gaúcha Ana Clara Warth está decidida a votar pela proibição, por uma questão de princípios. "Cresci em fazenda, meu pai tinha arma e isso nunca me agradou. Apesar de a pergunta ser confusa e o debate, malfeito, a iniciativa é válida", explicou, durante o almoço de sexta-feira, num restaurante da zona sul da capital.

Opinião semelhante tem outra mãe, Bernadete Aparecida Nunes Scaloni, ex-funcionária pública que, em 20 anos, presenciou sete assaltos. Em um dos casos, um ladrão foi morto pelos seguranças. "E não foi só isso: vi dois amigos perderem os filhos porque havia uma arma em casa. É uma dor muito dura, não se compara a nada nesse mundo", contou.

Os filhos dessas duas mães, porém, vão apertar botões diferentes na urna eletrônica. Na casa de Bernadete, em Cotia, Grande São Paulo, o trauma de dois assaltos em quatro anos fez os três filhos e o genro decidirem pelo "não". O filho mais velho de Ana Clara, cuja namorada foi assaltada cinco vezes, também é contra a proibição. E o mais novo vai anular o voto.

Na primeira vez que invadiram a casa de Bernadete, em 1996, a filha mais velha, Aline, tinha 12 anos. Ficou cinco horas em poder dos bandidos. Eles levaram tudo, incluindo duas armas de fogo, herança de família. "O bandido vai continuar com arma. Meu marido quer ter porte e a gente sabe onde conseguir uma por 300 contos", conta Aline, hoje com 22 anos e mãe de duas filhas.

No assalto seguinte, em fevereiro de 2000, foi a vez de Bernadete e os outros dois filhos, André e Anderson, serem feitos reféns. Mais uma vez, viram tudo ir embora com os bandidos. "Lá onde moro, se não tiver arma, montam em você. Se marcar touca, levam você mais de uma vez", diz André, de 19 anos, funcionário de uma lan house. Se o sistema de segurança pública fosse eficiente, argumenta, poderia acompanhar a mãe e votar pela proibição do comércio de armas. "Mas não dá para confiar na polícia. Só confio em mim, e para isso tenho de estar de igual para igual."

O irmão, Anderson, não pensa diferente. A descrença no poder do Estado em dar segurança é o que justifica sua posição. "Se proibir, o bandido vai saber que não tem arma na casa e vai se sentir mais seguro. Hoje, ele não sabe o que esperar."

Para o arquiteto Fabio Siqueira, de 30 anos, a opção também será o botão 1, e não o 2 que sua mãe, Ana Clara, vai apertar hoje. "Não acho que a solução seja proibir, e sim controlar", diz ele, cético em relação à restrição do comércio. "O referendo camufla a incompetência do governo em prover segurança."

O irmão de Fabio, o chefe de cozinha Pedro Siqueira, cita argumentos parecidos, mas prega o voto nulo como forma de demonstrar essa posição. "Como mecanismo democrático, o referendo é importante, mas está sendo mal usado", justifica. "Do jeito que foi feito, é desperdício de dinheiro público."