Título: Revolução processual
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/10/2005, Notas e Informações, p. A3

Numa iniciativa inédita nos meios jurídicos, o Ministério Público de São Paulo acaba de lançar uma campanha publicitária para comemorar os 20 anos de vigência de um texto legal que revolucionou o sistema processual brasileiro. Trata-se da Lei 7.347, que entrou em vigor em 1985 e foi concebida para permitir a defesa dos interesses coletivos da população. Foi ela que, ao aumentar as competências e as prerrogativas dos promotores de Justiça e dos procuradores da República, viabilizou a preservação do patrimônio cultural, a proteção do meio ambiente, a proteção dos consumidores, o ressarcimento de prejuízos causados a investidores por especuladores do mercado financeiro, o combate à corrupção e o combate a abusos praticados por governantes, entre outras importantes conquistas.

Até a promulgação dessa lei, a defesa dos interesses coletivos estava basicamente restrita às ações individuais, muitas delas embasadas no direito de vizinhança. Pela legislação então vigente, fortemente marcada pelo individualismo herdado do Código Civil napoleônico de 1804, somente os titulares de um direito ferido ou esbulhado podiam propor uma ação em juízo. E, em matéria de defesa de direitos coletivos, prevalecia a velha 'ação popular', um mecanismo processual concebido para permitir a anulação de atos do poder público lesivos aos interesses da sociedade.

O avanço da urbanização e o advento da sociedade de massas, especialmente após a década de 60, quando o País consolidou seu parque industrial, trouxeram a especulação imobiliária, a agressão ao meio ambiente e os mais variados abusos cometidos pelo poder econômico. Foi a partir daí que surgiu a necessidade de instrumentos processuais mais modernos, capazes de permitir a defesa de 'direitos difusos' e de interesses comunitários que jamais poderiam ser preservados por iniciativas isoladas de cada cidadão.

Preparado por um grupo de magistrados, promotores e procuradores estaduais paulistas, após o I Congresso Nacional de Processo Civil, realizado em Porto Alegre, em 1993, o primeiro projeto da ação civil pública foi apresentado em 1984 pelo então deputado - e hoje ministro - Flávio Bierrenbach. Logo após, o Ministério Público de São Paulo elaborou um projeto complementar, incorporando ao primeiro a tutela dos consumidores, a figura jurídica do inquérito civil e a autorização para entidades da sociedade civil impetrarem essa ação. E, com uma rapidez surpreendente, o Congresso aprovou os projetos após um ano de tramitação. A ação civil pública encontra suas origens na common law - mais precisamente no antigo Bill of Peace do sistema judicial norte-americano do século 17, que evoluiu com o tempo para a atual class action.

Adaptado ao sistema jurídico brasileiro, que foi forjado com base na civil law, esse instrumento processual modificou radicalmente os critérios de acesso da sociedade aos tribunais. Três anos após a sanção da Lei 7.347, a Constituição de 88 ampliou ainda mais essa bem-sucedida iniciativa legislativa, multiplicando as possibilidades de utilização da ação civil pública na vida social, econômica, política e administrativa do País. Graças a ela é que o Ministério Público conseguiu parte da ampla autonomia funcional de que hoje dispõe. Nos últimos 20 anos, a instituição foi responsável pelo ajuizamento da maioria das ações civis públicas. Não obstante a tentativa de alguns promotores de Justiça e procuradores da República de a utilizarem com objetivos meramente eleiçoeiros, essa revolução no sistema processual brasileiro trouxe importantes avanços.

Além da proteção do meio ambiente e da defesa dos consumidores, ela se revelou decisiva para a preservação do patrimônio público. Foi com base nessa revolução processual que os Ministérios Públicos estaduais e federal enquadraram prefeitos e governadores venais, processaram empreiteiras e políticos envolvidos em negociatas e obrigaram as diferentes instâncias do poder público a prestar determinados serviços essenciais a que a população tem direito. Todas as vezes em que foi usada com prudência e sensatez, na defesa dos interesses coletivos, a ação civil pública foi uma arma jurídica decisiva para o desenvolvimento do País. É por isso que seus 20 anos de vigência merecem ser comemorados.