Título: A melhor recordação de Vlado
Autor: Carlos Marchi
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/10/2005, Nacional, p. A14

Fisicamente, o engenheiro Ivo Herzog lembra um pouco o pai, principalmente pelos olhos e sobrancelhas; mas na alma, é uma perfeita repetição. Tinha 9 anos quando o pai foi assassinado sob tortura, em 1975; hoje, aos 39, confessa que não tem lembranças físicas muito nítidas dele. Mas quando fala de valores, se empolga e a lembrança do pai brota subitamente forte. Ivo diz que, no pouco tempo em que conviveram, o pai Vladimir lhe legou uma ética xiita, radical. "Aprendi que os fins não justificam os meios e que a coletividade está sempre acima do indivíduo", afirma. Acha importante ter uma ideologia e se diz socialista. "Se você acredita em alguma coisa, tem de lutar por ela e defender. Se vier alguma coisa em sentido contrário, você tem de debater", observa. E adianta, com rigor democrático: "É importante tornar pública a sua opinião."

ELEIÇÕES

Dá grande importância às eleições e não descarta a possibilidade de, um dia, ser candidato. Não foi, até aqui, porque ninguém o convidou, embora tenha convivido com políticos toda a sua vida. Quando era adolescente, fazia boca-de-urna para o PSDB. Se for candidato, já tem uma plataforma: "O que acaba com desigualdade social é educação", afirma.

A mãe Clarice, socióloga, trabalhou com d. Ruth Cardoso e foi aluna do professor Fernando Henrique. Os políticos que Ivo mais admira são Mário Covas, Franco Montoro e Ulysses Guimarães. Ele não se conforma de "um playboy" ter ganhado as eleições de 1989, quando Covas e Ulysses eram candidatos. "Como o povo pôde escolher tão mal?", interroga-se.

Ele tem sérias discordâncias com o PT por causa da política de oposição sistemática que os petistas faziam quando estavam na oposição. "Eles têm um passivo muito grande com a História brasileira. Quanta coisa o Brasil não deixou de fazer por causa do PT!", bate. A crítica se amplia a Lula: "O presidente tem de ser líder e Lula não exerce essa liderança, só pensa em viajar. Ele impôs ao Brasil um processo de monólogo, nem entrevista coletiva dá", diz.

ANISTIA

Ivo diz acatar a anistia que perdoou os assassinos de seu pai, mas acha que o crime deveria ser apurado em minúcias e os resultados, expostos a público. "Que as pessoas não tenham ido para a cadeia, tudo bem. Mas, se alguém cometeu um crime, mesmo depois de anistiado, a sociedade tem o direito de saber que, apesar de não ter de ir para a cadeia, aquela pessoa é um criminoso", cobra.

Ele diz que não está interessado em saber os nomes dos assassinos diretos do pai. "Não me interessa. Eu quero saber quem foram os articuladores da coisa", frisa. Alega que seu pai era, acima de tudo, um profissional e ele não assumia nenhuma postura radical, como também não usava a profissão para pregar sua ideologia.

Ivo tem uma noção precisa do que aconteceu. "Ele foi obrigado a escrever aquela carta. Depois concluiu 'esse não sou eu' e rasgou a carta. Aí aconteceu a morte dele", presume. Segundo ele, a morte do pai é um marco na abertura democrática. "A partir daquele momento, a sociedade passou a manifestar a sua indignação de forma mais clara e intensa", garante.

Apesar de se confessar ateu, revela que respeita os princípios das religiões. Talvez porque tenha concebido a efetividade do culto ecumênico que se seguiu à morte de seu pai. "Tudo começou na missa de sétimo dia, na Catedral da Sé. Foi lá que se perpetuou", salienta.

Pessoas que Ivo nem conhece perguntam se ele é "filho do jornalista", quando vêem o sobrenome. "Para mim, é motivo de muito orgulho. Mas é um orgulho complicado, porque você fica feliz pelo pai que teve, mas o pai está morto", arremata.

O neto Lucas sabe 'quase tudo' sobre o avô

VAGAS LEMBRANÇAS: Ivo não nasceu no Brasil, como o pai; nasceu na Inglaterra, em 1966, à época em que Vladimir Herzog trabalhava na BBC. A mãe possibilitou-lhe estudar em boas escolas e hoje ele é engenheiro, formado pela Escola Politécnica, da Universidade de São Paulo (USP), com especialização em Logística. Tem um filho, Lucas, hoje com 8 anos.

Ele não tem lembranças físicas muito nítidas do pai, apenas das coisas que o relembram, como a aléia de pinheiros na entrada do sítio, em Bragança Paulista, a Asahi Pentax e o telescópio onde Ivo visualizou as manchas solares.

Lucas, que tem hoje a idade que o pai tinha quando Vlado foi assassinado, sabe quase tudo sobre o avô. "Ele tem interesse, lê jornais, participa da entrega do prêmio (Vladimir Herzog de Jornalismo), está sempre envolvido", conta Ivo. Só não lhe contaram detalhes da extrema brutalidade com que o avô foi assassinado no DOI-Codi da Rua Tutóia. "Mas ele sabe que o avô foi assassinado pelo governo militar", complementa o pai de Lucas.

Ivo, que viveu noutro tempo, viveu tudo cruamente. Viu ao vivo, na TV Cultura, quando dois agentes da repressão foram buscar seu pai. No início sua mãe lhe contou que tinha sido um acidente de carro, mas ele logo percebeu a verdade, com que tem convivido dolorosamente nestes 30 anos.