Título: Militares esperavam batalha após missa
Autor: Carlos Marchi
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/10/2005, Nacional, p. A14

Os militares estavam preparados para uma batalha. Tudo para impedir que o ato ecumênico em memória de Vladimir Herzog se transformasse em comício ou manifestação. Seus agentes carregavam lenço vermelho na lapela ou na camisa. Quem os visse poderia imaginar que se tratava de protesto ou solidariedade ao morto. Essa foi a forma que o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) encontrou para identificar seus homens em meio à multidão esperada para a Catedral da Sé. Eram 13 horas do dia 31 de outubro de 1975 quando os primeiros dos 172 agentes do Dops chegaram à Praça da Sé. Eram 10 homens que fariam a chamada "observação indireta". No jargão da repressão, aquilo significava usar binóculos, máquinas fotográficas e filmadora para acompanhar a movimentação. Os últimos a aparecer por ali seriam os dois delegados e os dez investigadores que receberam missão de entrar na igreja e se infiltrar na multidão. Eram os "agentes especiais".

Tudo isso está descrito nas 11 páginas da Operação Gutenberg, feita pelo Dops a pedido do 2º Exército e da Secretaria da Segurança Pública para vigiar a celebração realizada por d. Paulo Evaristo Arns na catedral. A ação do Dops era um complemento do Plano de Operações Terço, elaborado pela Coordenação de Informações e Operações (Ciop), do Gabinete da Secretária da Segurança Pública, com o objetivo de evitar o acesso das pessoas à Sé.

O Terço consistia em parar o trânsito da cidade por meio de blitze. Só no centro eram 25 bloqueios - outros 5 estavam nas pontes do Rio Pinheiros e avenidas que ligavam a Cidade Universitária ao centro. O Estado obteve cópias dos dois planos. O primeiro foi feito pelo delegado Tácito Pinheiro Machado, diretor do Dops; o segundo, pelo coronel do Exército Sidney Teixeira Alves, da Ciop, com o auxílio do coronel da Polícia Militar Milton de Almeida Pupo, do Policiamento de Trânsito.

"A idéia era esvaziar. Massa é massa: quanto maior, mais difícil de controlar", contou o então secretário da Segurança Pública, coronel Erasmo Dias. "Queríamos fechar os caminhos principais para chegar à catedral. Em vez de demorar dez minutos, ia demorar duas horas e muita gente desistiria no meio do caminho", explicou.

Mas a intenção de mobilizar esse aparato ia além do que Erasmo Dias contou. Ele se preparava para uma batalha. Em sua avaliação da "situação geral", o coronel Sidney, da Ciop, dizia que "informações coletadas dão conta da possibilidade de o ato transformar-se em pretexto para comícios ou mesmo agitações da ordem pública" por outras áreas de São Paulo, como a Cidade Universitária.

Os inimigos eram os "subversivos, simpatizantes e inocentes úteis em flagrante atitude de perturbação da ordem". Previa-se o emprego da força, mas só com a autorização do secretário. Ao Dops caberia acompanhar o ato religioso e, "mediante infiltração de agentes, identificar os líderes (do ato) e pinçá-los (prendê-los), de acordo com a evolução dos acontecimentos, além de realizar a triagem dos detidos". A tropa de choque da PM faria a repressão de comícios e passeatas.

O Terço prescrevia um esquema de evacuação de feridos e aconselhava às organizações militares que instruíssem seus "elementos no sentido de evitar transitar pelas áreas centrais da cidade" até as 20 horas.

A identificação dos líderes que seriam presos era função de 16 investigadores na Sé. Outras 11 equipes, distribuídas ao redor da praça, fariam as prisões. Os agentes tinham revólveres, pistolas, espingardas e bombas de efeito moral.

Os detidos seriam "triados" no quartel do Corpo de Bombeiros. Para a coordenação-geral da operação, a repressão destacou seu mais famoso agente: o delegado Sérgio Paranhos Fleury. Tudo com aprovação do comandante do 2.º Exército, o general Ednardo D'Ávilla Melo, que foi informado de tudo pelo seu Estado-Maior.

Mas, ao contrário do que esperavam os militares, nenhuma batalha ocorreu. Não houve comício ou passeata que lhes perturbasse o sossego. As 8 mil pessoas que furaram o bloqueio do Terço ouviram a celebração em silêncio e assim voltaram para casa. Em ordem e em paz.