Título: Um corpo no caminho dos generais
Autor: Carlos Marchi
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/10/2005, Nacional, p. A14

A morte sob tortura do jornalista Vladimir Herzog há 30 anos, no dia 25 de outubro de 1975, foi a culminância de uma escalada do regime militar contra o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Depois de liquidar as guerrilhas urbana e rural, a ditadura, que já voltara os olhos para o PCB desde meados de 1974, se assustou com o resultado das eleições de novembro, na qual a oposição venceu 16 das 22 cadeiras em disputa no Senado. E descobriu que a mais perigosa ameaça à sua continuidade não era a guerrilha armada, que sonhava implantar o socialismo, mas a guerrilha do voto, que pregava a volta da democracia. A repressão do regime resolveu atacar com toda força um aliado estratégico do MDB, o PCB, no qual podia carimbar a pecha de "comunista". Esse posicionamento do governo militar serviu como uma luva para a linha dura, que precisava de argumentos para preservar intocados seus ideólogos, agentes e métodos. "A vitória do MDB foi uma evidente reação da sociedade à ditadura", afirma o historiador José de Souza Martins, professor aposentado da USP.

SEM LIMITES

No fim de 1975, a escalada acumulava seis inquéritos, acusando mais de uma centena de pessoas, e muitas mortes, sob tortura e a sangue frio, das quais a de Vlado foi apenas a mais simbólica e visível. A repressão desenfreada contra o PCB só terminaria em janeiro de 1976, depois que a morte do operário Manoel Fiel Filho no centro de tortura do DOI-Codi paulista cindiu os militares e o presidente Ernesto Geisel demitiu o comandante do II Exército, expoente da linha dura.

Nos anos anteriores, apesar da repressão mais generalizada, o regime, focado na repressão à luta armada, tinha ignorado o PCB, que era contra a guerrilha e tinha como estratégia a luta política pelo voto, afirma convicto o ex-dirigente Armênio Guedes. De fato, em 1972 o PCB contabilizou dois mortos (um deles, Célio Guedes, irmão de Armênio); em 1973, um. Os números cresceram em 1974, quando a luta armada já estava dizimada - desapareceram cinco dirigentes.

Com o resultado da eleição de 15 de novembro de 1974, a relação de baixas do Partidão cresceu assustadoramente: houve mortes sob torturas e assassinatos seguidos de sumiço do corpo. A grande ofensiva começou em janeiro de 1975, com o estouro de duas modestas gráficas do PCB, no Rio e em São Paulo.

A escalada contra o PCB para atingir o MDB foi uma idéia do regime e do governo, não apenas da linha dura. O atestado disso foi o pronunciamento do então ministro da Justiça, Armando Falcão, na televisão, no dia 30 de janeiro de 1975. Em sua fala, Falcão fez um relatório público do estouro das duas gráficas clandestinas do PCB. Como quem dava uma senha para identificar o novo inimigo do regime, Falcão destacou "o intenso esforço, o específico trabalho desenvolvido pelo PCB em favor de candidatos a diversos postos eletivos no pleito de novembro".

CERCO

Com a imprensa encurralada pela censura, a Igreja sob intensa pressão, a nova estratégia da ditadura era "colar" o PCB no MDB para interromper o avanço da nascente adesão popular à oposição e o crescimento da luta civilista pela redemocratização. As sucessivas cargas contra o PCB, durante o ano, foram todas marcadas pela evidente intenção de vincular o Partidão ao MDB e ao resultado das eleições de 1974.

O líder do PSDB na Câmara, Alberto Goldman (SP), acusado de ser militante do PCB em 1975 - e de fato o era -, diz que o general Geisel não agia diferentemente dos torturadores antes da morte do operário Manoel Fiel Filho, em janeiro de 1976. "A reação dele ao assassinato de Vlado foi quase nula. Ele só se dispôs a enfrentar o pessoal da tortura quando o poder dele foi colocado em xeque", diz Goldman.

Na época, o deputado teve um curto diálogo com Geisel, num coquetel no Palácio dos Bandeirantes. "Estão matando gente em São Paulo", disse Goldman. "Não pense que eu não sei disso", respondeu Geisel, seco. Sabia, mas não fazia nada.