Título: Lu faz 18 anos. Um marco para a ciência brasileira
Autor: Claudio Rostelato e Ricardo Westin
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/10/2005, Vida&, p. A27

Não teve bolo nem velinhas. Ontem, Luciane Aparecida da Conceição, moradora na periferia de Sorocaba, completou 18 anos. Era uma exigência dela: "Já sou bem grande para festinhas de aniversário", retruca, piscando os olhos verdes. Mas não quis deixar a data em branco. Planejava sair com os amigos e ganhar de presente a sonhada chapinha, para deixar seus cabelos ainda mais lisos. Lu, como é chamada, tem motivos de sobra para escolher como comemorar. Soropositiva desde que nasceu, ela é, graças ao tratamento pioneiro que recebe, uma adolescente normal.

Estuda, faz academia, tem paqueras, vai a bailes. Não desgruda do celular nem dos medicamentos, um coquetel de quatro comprimidos por dia, que neutralizam o HIV e garantem uma carga viral indetectável.

A data, portanto, é um marco para a ciência, uma lição de vida. Luciane foi a primeira criança do Brasil a receber o tratamento com o coquetel anti-retroviral, um conjunto de drogas combinando o d4T (substituto do AZT), o 3TC (da família AZT) e o ritonavir (inibidor de protease), uma novidade na época que mudou a sua vida e a de milhares de outras crianças portadoras do HIV.

Lu nasceu com um prognóstico de poucos anos de vida. Sua mãe foi infectada numa transfusão de sangue, no oitavo mês de gestação. Ela já nasceu com o vírus. Poucos dias antes de completar 9 anos, estava praticamente condenada. Sua médica, a infectologista Rosana Maria Paiva dos Anjos, decidiu então pelo coquetel, até então só usado por adultos. Um dos primeiros a recebê-lo foi o astro do basquete Magic Johnson.

Responsável até hoje pelo tratamento de Luciane, a médica lembra o dia 11 de setembro de 1996, quando teve de desafiar a medicina. Como o coquetel nunca tinha sido testado em crianças no País, não teve a permissão do governo. "Fui autorizada por uma liminar e comecei a ministrar o medicamento. Foi uma vitória contra a aids."

Luciane, que estava com tuberculose e pneumonia, teve melhoras visíveis em uma semana: os cabelos, que haviam caído, começaram a crescer e as feridas que tomavam conta de seu corpo sumiram. Seu caso surpreendeu o mundo. "Não existiam precedentes. Os resultados significam perspectivas de uma vida saudável para as demais crianças infectadas pelo vírus HIV", afirma a médica. A medicação de Luciane também foi alterada, de 14 comprimidos por dia para apenas 4.

Luciane está entrando na fase adulta com seus lindos olhos verdes, que já estão dando trabalho para os pais adotivos, Edgard e Arlinda. "Namoro, só em casa", diz o pai. O casal, de origem humilde, adotou Luciane um ano depois que ela nasceu. A mãe biológica morreu de aids.

Em casa, Lu é o xodó. O pai, aposentado por invalidez, e a mãe, que deixou de trabalhar como doméstica para se dedicar à filha, contam com a ajuda de uma pensão vitalícia de Luciane, de cinco salários mínimos, garantida pelo Estado, fruto da primeira ação ganha por um paciente infectado pela aids em hospital público.

Luciane estava ansiosa para completar os 18 anos. Seus olhos brilham quando fala dos sonhos. Quer ser médica. Tem a certeza agora de que pode sonhar e fazer planos. Como qualquer adolescente, sabe que a vida recomeça um dia após o outro.

REVOLUÇÃO: A combinação de remédios para enfrentar a aids, em meados dos anos 90, é até hoje a melhor arma contra a doença. O coquetel não acaba com o vírus, mas o reduz a níveis baixíssimos no corpo. É algo que os remédios isolados ou aos pares - como se fazia até então - na maioria das vezes não conseguiam. "Com cerca de 15 remédios, temos muito mais opções de tratamento para uma doença incurável", diz a infectologista pediátrica Heloísa Helena Marques, da USP. "O coquetel foi uma revolução. A expectativa de vida de quem tem o vírus é praticamente igual à de quem não tem", completa o infectologista Esper Kallás, da Unifesp.