Título: Cotas e reforma universitária
Autor: Leandro R. Tessler
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/10/2005, Espaço Aberto, p. A2

No último 19 de setembro, uma segunda-feira, o ministro Fernando Haddad, da Educação, declarava à Folha de S.Paulo que a adoção de cotas não será obrigatória no contexto do projeto de reforma universitária que atualmente se encontra na Casa Civil. Apenas dois dias depois, na quarta-feira dia 21, a Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados aprovou por unanimidade o substitutivo proposto pelo relator, deputado Carlos Abicalil (PT-MT), ao Projeto de Lei 73/99, da deputada Nice Lobão (PFL-MA). Esse projeto traz apensado o Projeto de Lei 3267/04, encaminhado pelo Poder Executivo, mais precisamente pelo então ministro Tarso Genro. Dentro do espírito do projeto encaminhado pelo Poder Executivo, o substitutivo determina que "as instituições públicas federais de educação superior (...) reservarão, em cada concurso de seleção para ingresso nos cursos de graduação, no mínimo, cinqüenta por cento de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas". Além disso, "em cada instituição federal de ensino superior, (essas) vagas serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados negros e indígenas, no mínimo igual à proporção de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE".

Ao propor cotas étnicas correspondentes ao último censo do IBGE, o projeto ignora a exclusão que ocorre nos primeiros anos do ensino. Por exemplo, segundo dados do IBGE, no Estado de São Paulo, em 2002, 26% da população se autodeclarava preta ou parda. Obviamente, essa distribuição étnica deveria reproduzir-se entre os concluintes do ensino médio, como espera o projeto de lei. Infelizmente, no entanto, a exclusão ocorre já no ensino fundamental e médio. Como conseqüência, entre os aptos a prestar vestibular essa proporção caía para 17% da população.

Entre os cotistas, as vagas deverão ser determinadas por um "coeficiente de rendimento", considerando-se um currículo comum a ser definido pelo Ministério da Educação (MEC). Ou seja, na contramão da reforma universitária, o projeto desconsidera as diferenças regionais e imagina que esse "coeficiente de rendimento" será uniforme do Oiapoque ao Chuí.

Mais adiante, o projeto determina que "as instituições (...) terão o prazo máximo de quatro anos (...) para o cumprimento integral do disposto nesta Lei". Até mesmo o ministro Haddad, em entrevista ao jornal O Globo, considerou o prazo proposto curto demais, podendo ter impacto do ponto de vista da qualidade do ensino superior.

As cotas saíram do projeto da reforma universitária para irem parar num projeto de lei que contém um outro encaminhado pelo Poder Executivo, numa tática para tirar o foco dessa discussão no projeto da reforma. O próprio deputado Abicalil mencionou recentemente que o projeto original da deputada Nilce Lobão nada tinha que ver com reserva de vagas, ou seja, fora adaptado para contemplar os desígnios do Poder Executivo. Na forma como ficou, acabou preocupando até mesmo o Executivo.

Não há dúvidas quanto à necessidade urgente de ações afirmativas para a inclusão social e étnica no ensino superior. As medidas tomadas pela Unicamp na forma de um Programa de Ação Afirmativa e de Inclusão Social, o PAAIS, tão elogiadas pelo ministro Haddad, foram baseadas em valores de inclusão, de mérito e de autonomia universitária, todos muito caros ao mundo acadêmico. Trata-se de um programa de ação afirmativa sem cotas. Em lugar de reservar vagas para um ou outro grupo, são adicionados pontos aos candidatos oriundos de escolas públicas e mais pontos aos que, além disso, se declaram pretos, pardos ou indígenas. O PAAIS vem apresentando resultados muito relevantes (por exemplo, no curso de Medicina, o mais concorrido da Unicamp, o número de egressos da escola pública triplicou e o de afrodescendentes aumentou 60%) e conta com o respaldo da comunidade acadêmica justamente porque esta pôde participar de sua concepção e discussão.

O Projeto de Lei 73/99 pode vir a ser votado ainda este ano. Na forma que está, é quase certo que esbarrará em oposição por parte dos Conselhos Universitários e da comunidade acadêmica da maioria das universidades federais, pois viola os princípios de mérito e de autonomia garantidos na Constituição federal de 1988. Não se pode colocar todo o sistema federal em uma única camisa-de-força que determina em detalhes como devem ser seus programas de inclusão social. Uma política de Estado para inclusão social deveria determinar metas a serem atingidas e recompensas para as instituições que venham a atingir essas metas - não impor o caminho.

Não se podem tratar todas as instituições de ensino superior da mesma forma. Cada uma delas tem as suas peculiaridades e seus próprios objetivos. É essa diversidade que faz o sistema universitário tão importante para o desenvolvimento humano. Talvez por causa da tradição bacharelesca do Brasil, alguns setores da sociedade acreditam que por meio de uma lei seja possível corrigir séculos de injustiça social. É impressionante a quantidade de leis até hoje promulgadas com esse objetivo que não tiveram efeito algum. Nenhum projeto nacional de ação afirmativa para o ensino superior tem chance de obter os resultados necessários e almejados se não conquistar corações e mentes do coletivo acadêmico.