Título: Até o fim do século, gelo do Ártico deve desaparecer
Autor: Andrew C. Revkin
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/10/2005, Vida&, p. A18

Em 1969, Roy Koerner, um glaciólogo canadense, foi um dos 4 homens (e 36 cães) a completar a primeira travessia pela superfície do Oceano Ártico, do Alasca, passando pelo Pólo Norte, à Noruega. Hoje, disse ele, tal viagem teria sido impossível, pois simplesmente não existe gelo suficiente. Em setembro, a área coberta pelo gelo do mar atingiu uma baixa recorde. "Recentemente, examinei uma proposta de um cara para atravessar de caiaque", contou. Muitos cientistas dizem que demorou muito tempo para eles aceitarem que o aquecimento global, em parte resultado de dióxido de carbono e de outros gases de retenção de calor na atmosfera, poderá encolher o manto de gelo do verão do Ártico. E muitos desses mesmos cientistas concluíram que o impulso por detrás do aquecimento causado por seres humanos, combinado com a tendência da região para amplificar a mudança, pôs o Ártico numa trajetória além do ponto de retorno.

Muitos especialistas acreditam que o aquecimento e o derretimento particularmente abruptos das últimas décadas é resultado de um misto de causas humanas e naturais. Mas uma série de simulações por computador do clima global realizadas em centros de pesquisa ao redor do mundo mostra que a influência futura dos seres humanos dominará.

Mesmo com um crescimento apenas modesto nas emissões de gases de efeito estufa, quase todo o gelo do mar do verão tende a desaparecer por volta do fim do século. Algumas simulações mostram boa parte do gelo desaparecendo por volta de 2050.

Das várias simulações, todas feitas para um relatório científico internacional sobre tendências climáticas a ser emitido em 2007, as únicas que mantêm o gelo do mar no verão no Ártico por volta de 2010 são as que pressupõem que as emissões de gás de efeito estufa sejam mantidas constantes nos índices medidos em 2000 - algo que já é impossível. Todos os outros modelos produzem um Oceano Ártico no verão semelhante ao "mar polar aberto" que foi procurado por oceanógrafos e exploradores no século 19.

Os modelos são, claro, visões de uma realidade muito mais complicada, de forma que suas projeções são incertas. Mas o que preocupa os cientistas de campo, que formam suas opiniões baseadas em indícios empíricos incrustados no gelo ou registrados por termômetros, é que as observações da mudança que apontam para padrões passados estão de acordo com os modelos.

"Mesmo que você parasse todas as máquinas imediatamente, não há escapatória, ao menos que se tire fisicamente o dióxido de carbono do ar", disse Henk Brinkhuis, especialista nos ecossistemas do passado do Ártico na Universidade de Utrecht, Holanda. "Você pode discutir se este processo vai demorar 20, 50 ou 100 anos, mas isso não altera o fato de que acontecerá."

O trabalho de campo indica que as temporadas de aquecimento do Ártico, como a entre as décadas de 1920 e 1930, foram restritas a determinadas regiões, enquanto o aquecimento recente tem, em boa parte, progredido conforme a elevação das temperaturas no Hemisfério Norte - sinal de grandes forças em ação, e não da variabilidade regional.

A inevitabilidade do recuo do gelo do verão, segundo especialistas no Ártico, é resultado da natureza do sistema climático, que é algo parecido com um pesada engrenagem - uma vez dada a partida, ela tende a manter-se em movimento. Dentro de poucas décadas, dizem, o poder de isolamento dos gases de efeito estufa dominará as flutuações climáticas naturais, possivelmente por séculos.

A engrenagem no Ártico se movimenta com mais rapidez do que em outras regiões porque a região amplifica a mudança. O mecanismo mais óbvio está na diferença na forma como atuam debaixo da luz do sol o brilhante gelo do mar e o mar escuro. O gelo reflete grande parte da energia solar mandando-a de volta para o espaço, enquanto a água absorve a maioria dela.

O resultado é que cada área do oceano exposta pelo gelo derretido absorve calor, derretendo mais gelo, expondo mais mar, absorvendo ainda mais calor e assim por diante. "Você pode chamar isso de 'temperatização' do Ártico, pois ainda não inventamos uma palavra para isso", disse Charles Voeroesmarty, do Centro de Pesquisa de Sistemas Complexos da Universidade de New Hampshire e um dos 21 co-autores de um artigo sobre as mudanças publicado na Eos, revista da União Americana de Geofísica, que diz: "Parece haver poucos, se houver algum, processos ou feedbacks dentro do sistema ártico capazes de alterar essa trajetória."