Título: Especialistas preocupam-se com a imparcialidade
Autor: Reali Júnior
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/10/2005, Internacional, p. A16

Para críticos, o ideal seria um tribunal internacional, como o que julga o ex-presidente iugoslavo Slobodan Milosevic, em Haia

Vinte e dois meses depois de ter sido arrastado para fora de seu esconderijo, Saddam Hussein comparece hoje a um tribunal iraquiano para responder pelas brutalidades infligidas a seus conterrâneos iraquianos. Mas o que deveria ser um momento de triunfo para as vítimas, em vez disso está despertando a preocupação sobre a imparcialidade e a competência da própria corte. O tribunal especial iraquiano estabelecido para conduzir o julgamento escolheu uma ação judicial que muitos iraquianos acreditam ser muito estreita para responder pelo desejo generalizado de que Saddam seja responsabilizado pelos seus crimes mais selvagens. E a pressão política para apressar o julgamento obrigou o tribunal a acelerar o trabalho para preparar outros processos judiciais envolvendo dezenas de milhares de vítimas, quase 300 valas comuns e cerca de 40 toneladas de documentos.

Embora muitos iraquianos estejam ávidos pelo momento de ver Saddam no banco dos réus, entidades de direitos humanos e especialistas jurídicos ocidentais já avisaram que é improvável que o ex-ditador tenha um julgamento imparcial. O desfecho provável, uma sentença de morte, será o que os críticos mais ácidos têm descrito como uma "justiça do vencedor".

Críticos daqui e do exterior disseram que o fórum apropriado para o julgamento teria sido um tribunal internacional do tipo que passou quatro anos ouvindo testemunhas no processo contra o ex-presidente iugoslavo Slobodan Milosevic, em Haia.

Saddam, com outros funcionários de seu regime, começará a prestar contas de seu passado numa ação judicial centrada na execução de mais de 140 pessoas em Dujail, cidade comercial de maioria xiita, 55 quilômetros ao norte de Bagdá. As vítimas foram seqüestradas pela polícia secreta depois de uma tentativa de assassinato contra Saddam lá, em 1982.

Autoridades iraquianas dizem esperar que o julgamento seja remarcado, possivelmente após um sessão de abertura de apenas poucas horas. A próxima sessão poderá ser adiada por semanas, provavelmente até o próximo ano, em parte para analisar os pedidos apresentados pela defesa.

Mesmo funcionários do alta escalão do tribunal, que pediram para não se identificar, dizem que um adiamento será um alívio, poupando-os do constrangimento de verem os trâmites se desenrolarem de forma atropelada, uma vez que os inexperientes juízes e promotores iraquianos estarão expostos à pressão de um julgamento que atrairá a atenção do mundo inteiro. Até uma disputa sobre a cobertura ao vivo pela TV tem sido objeto de discussões de última hora.

Há a preocupação pelo fato de o tribunal não tratar primeiramente dos mais devastadores e hediondos crimes atribuídos a Saddam, principalmente entre xiitas e curdos, as principais vítimas, cujos representantes agora dominam o governo. Os árabes sunitas, apoio fundamental de Saddam, têm apenas um papel residual.

Entidades iraquianas e ocidentais de defesa dos direitos humanos avaliam que pelo menos 300 mil iraquianos, na maioria xiitas e curdos, foram mortos pela cruel máquina de repressão de Saddam, um número que não leva em conta os centenas de milhares de mortos nas guerras contra o Irã e o Kuwait.