Título: Problema é legitimidade do Estado, diz Rezek
Autor: Reali Júnior
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/10/2005, Internacional, p. A16

Tribunal foi formado por governo de ocupação, sob coordenação de um suspeito de assassinato

O Tribunal Especial Iraquiano que deve julgar a partir de hoje os crimes cometidos por Saddam Hussein e demais membros da cúpula de seu regime tem sido fortemente contestado desde sua constituição não só em Bagdá, mas também em toda a Europa. O tribunal foi criado por decreto firmado em 10 de dezembro de 2003 pelo então administrador da ocupação americana no Iraque, Paul Bremer. Normalmente, a competência para esse julgamento deveria ser atribuída ao novo Tribunal Penal Internacional, mas ele acaba de se instalar para julgar crimes mais recentes e não os cometidos num passado mais distante - caso dos ocorridos durante o regime de Saddam. Indagado sobre a legitimidade do julgamento, o juiz da Corte de Justiça das Nações Unidas, instalada em Haia, o brasileiro Francisco Rezek, preferiu limitar-se a um comentário genérico, mas contundente, evitando declarações formais sobre o assunto e assumindo uma posição mais discreta que sua função de magistrado impõe. "O tribunal , no caso, parece encontrar sua legitimidade na nova ordem jurídica do Estado iraquiano. O problema não está no tribunal em si, mas no próprio Estado, produzido e mantido por uma ocupação militar estrangeira", diz Rezek. "De outro ponto de vista, que tem mais a ver com a moral e o direito, é irônico que se monte um tribunal para julgar um indivíduo num cenário onde as execuções sumárias, desde a guerra, fazem parte do cotidiano."

"Nenhuma criança iraquiana foi julgada antes de ser morta nesses últimos anos", concluiu o magistrado da Corte de Haia.

O tribunal iraquiano foi criado e financiado pela administração americana, mas o funcionário escolhido para sua organização foi um iraquiano, Salem Chalabi, sobrinho de Ahmed Chalabi, homem de negócios que foi condenado a 18 anos de prisão por falência fraudulenta na Jordânia, mas hoje ocupa as funções de vice-primeiro-ministro do Iraque.

Salem Chalabi, por seu lado,está foragido para evitar que se cumpra um mandado de prisão contra ele por suspeita de assassinato. Até a véspera do julgamento, não se sabia quais eram as nacionalidades dos observadores internacionais e dos 25 jornalistas escolhidos minuciosamente para assistir ao julgamento. Por razões de segurança, também não era conhecida a identidade dos cinco juízes encarregados de julgar Saddam e colaboradores do ex-ditador. O segredo envolve ainda a identidade dos investigadores americanos do Regime Crime Liaison Office, inspirado no FBI, que ajudam os iraquianos a reunir provas contra Saddam, mas que não falam nem lêem árabe, lamenta Noah Feldman, ex-conselheiro jurídico de Bremer.

O processo chama atenção por sua grande confusão, envolvendo também a própria defesa dos acusados, pois o tribunal divulga informações a conta-gotas. O juiz de instrução Raed Jouhi garante que "o processo será público, a menos que os cinco juízes decidam o contrário". Todos os juízes são iraquianos curdos e xiitas, originários de comunidades que foram as maiores vítimas de Saddam. Nenhum representante da minoria sunita que apoiava o regime participa do julgamento. Tudo isso leva os advogados de Saddam a defender o adiamento do processo para melhor organizá-lo. Pelo menos essa foi a posição defendida, em Paris, por Roland Dumas, advogado e ex-ministro do Exterior de François Mitterrand.