Título: Quem confia em José Dirceu?
Autor: João Mellão Neto
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/10/2005, Espaço Aberto, p. A2

Conheci José Dirceu no início de 1991, quando nós dois assumimos nossos primeiros mandatos de deputado federal. Era, então, um sujeito simpático, embora capaz de gestos extremados. Já contei neste Espaço Aberto a experiência que compartilhamos quando o avião que nos traria de volta a São Paulo quebrou e não havia vagas no vôo seguinte. Dirceu teve uma atitude surpreendente. Munido de sua carteira de deputado, invadiu a pista do Aeroporto de Brasília e se sentou na roda dianteira da aeronave, alegando que de lá não sairia até que lhe fosse permitido embarcar. O episódio mobilizou toda a segurança da Infraero e atrasou a decolagem em mais de uma hora. Dirceu acabou não embarcando, mas, se o seu intuito fora o de chamar atenção, isso ele conseguiu. "Ele continua o mesmo líder estudantil de 1968", pensei comigo mesmo. "Não conhece limites." Eu estudara a sua história quando, em 1977, participava do renascimento do movimento dos estudantes. Boa pinta, ousado, irreverente, Dirceu, como presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE), era o "sex simbol" de sua época. Fazia enorme sucesso entre as jovens universitárias. Sua carreira foi curta. Preso no congresso de Ibiúna, em 1968, foi libertado por ocasião do seqüestro do embaixador americano Charles Elbrick e, banido do País, foi asilar-se em Cuba. Ressurgiu no cenário político 11 anos depois, com a anistia, e ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores (PT).

Concordo plenamente com o jornalista Tales Alvarenga, que, na revista Veja da semana passada, questionou o "brilhante passado de lutas" que Dirceu proclama possuir. Com exceção do período entre 1966 e 1968, quando o jovem Dirceu alternava passeatas com vida sexual intensa, não se tem notícia de nenhuma contribuição efetiva que tenha dado à resistência democrática até o final dos "anos de chumbo". Uma parte do tempo ele passou em Cuba, especializando-se em guerrilha e "inteligência", e a outra parte passou no Paraná, onde, após uma operação plástica, assumiu o papel de pacato comerciante, casou-se, teve filhos e era tido como um cidadão totalmente avesso à política.

Não se trata, obviamente, de um impressionante currículo de combate à ditadura. Nesse ínterim, muitos morreram, outros foram torturados, alguns enveredaram para a luta armada e outros tantos resistiram bravamente nos poucos espaços de luta institucional que o regime permitia. Dirceu, não. Não assumiu nenhum risco, nem durante a sua estada em Cuba, nem durante a sua passagem pelo Paraná. Talvez não tivesse alternativa, vá lá. Mas daí a sacralizar a "sua história" vai uma longa distância. Dirceu não foi um herói, nem sequer um mártir. Foi, no máximo, uma vítima, entre tantas outras, do regime militar. E seu "passado de lutas" não é o suficiente para absolvê-lo dos crimes recentes que lhe são imputados.

Seria ele inocente? Teria ele escrúpulos éticos suficientes para jamais ter perpetrado todas as barbaridades de que é acusado? Eu entendo que não. E para tanto me permito ir um pouco além da abordagem de Alvarenga.

A gente conhece as pessoas pelas suas atitudes. Voltemos a Cruzeiro do Oeste, no Paraná, onde o cidadão José Dirceu, com nome trocado, passou uma época de sua vida. Lá ele se casou e teve um filho. Foram nada menos que cinco anos. Nem mesmo os nossos melhores atores seriam capazes de incorporar um personagem fictício durante tão longo período de tempo. É preciso muito sangue frio. Dirceu assumiu o papel de "comerciante pacato" com tal empenho e maestria que jamais ninguém, nem ao menos a sua esposa, suspeitou de sua verdadeira identidade. "Nem ao menos a sua esposa" - isso diz muito sobre o caráter e a frieza do nosso herói. Como é possível namorar, casar e ter filhos com uma mulher, sem jamais lhe confiar nenhum segredo? Nós somos humanos, temos os nossos anseios, as nossas fraquezas e os nossos temores. É da nossa natureza ter confidentes, pessoas nas quais confiamos e a quem expomos as nossas quimeras. Pode alguém ser tão dissimulado a ponto de nem a sua própria companheira de leito vir a conhecê-lo em sua intimidade? Pois foi isso que se passou. Durante cinco longos e continuados anos.

Se Dirceu foi capaz disso, é o caso de se dizer que ele é capaz de tudo. Como acreditar em sua sinceridade quando ele diz que é inocente? Como confiar na sua palavra quando ele reitera que nada sabia sobre as enormidades do seu partido? Dá para lhe atribuir a condição de ingênuo? É possível conceder-lhe a presunção da boa-fé?

Dirceu afirma que está sendo julgado "não pelos seus atos, mas sim pela sua história". De certa forma, é verdade, mas apenas em parte. Primeiro, porque a sua "grandiosa história" não é tão heróica como ele julga ser. Não é essa história, com certeza, a que está agora no banco dos réus.

A história que estamos todos julgando é a de um homem frio, dissimulado e destituído de escrúpulos que já demonstrou ser capaz, no passado, de esconder a sua verdadeira personalidade até mesmo de seu círculo familiar mais íntimo.

Se ele foi capaz disso, creiam-me, esse homem é realmente capaz de tudo. E o melhor, para a salvaguarda de nossas instituições democráticas, é que alguém assim seja banido das lides políticas.

José Dirceu, em nome de Deus, parta!