Título: Indicada por Bush desiste de cargo
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/10/2005, Internacional, p. A18

A assessora jurídica da Casa Branca, Harriet Miers, desistiu ontem de sua nomeação à Suprema Corte. A decisão poupou o presidente americano, George W. Bush, de uma derrota certa no Congresso. Mas não diminuiu os problemas do líder americano na pior hora de seus quase cinco anos de governo. Para Bush, o colapso da candidatura de Miers ao tribunal máximo é uma humilhação pessoal - um dia antes de enfrentar a real possibilidade de ver sua credibilidade e a eficácia de seu governo comprometidos pelo indiciamento criminal de um ou mais de seus mais altos assessores pelo vazamento da identidade de uma agente do serviço clandestino da CIA (ler abaixo).

A escolha da advogada se deu pela única razão de ter sido ao longo dos últimos dez anos uma leal servidora do presidente. A desistência é um tropeço político considerável, precipitado por uma rebelião da base política de Bush, que deixa o presidente diante da difícil tarefa de nomear um novo candidato que possa ser confirmado sem aprofundar ainda mais as divisões nas hostes conservadoras.

Miers foi reprovada pelos senadores nos exames escrito e oral que fez - primeiro, ao submeter respostas absolutamente primárias nos formulários sobre suas qualificações para ser juíza da mais alta corte, e, depois, nas conversas que teve com vários deles. Ela anunciou a desistência um dia depois de um grupo formado por ideólogos neoconservadores e porta-vozes da ultradireita religiosa investirem publicamente contra sua nomeação por meio de um anúncio de televisão que denunciava sua falta de preparo.

Na carta que enviou a Bush, Miers tentou disfarçar sua embaraçosa decisão numa questão de princípio. Ela escreveu que a entrega de documentos que os senadores pediram sobre seu trabalho na Casa Branca comprometeria o privilégio que protege certos documentos do Executivo. Sempre fidelíssima a Bush, ela escreveu que, nessa condições, o processo de confirmação "representa um ônus para a Casa Branca e para nosso staff que não é do interesse do país".

Bush disse que aceitou a decisão de sua assessora "relutantemente" e procurou limitar os danos causados pelo episódio. "Nomeei Harriet Miers para a Suprema Corte por causa de sua extraordinária experiência como advogada, seu caráter e sua filosofia jurídica conservadora", disse ele, num comunicado. "Compreendo e compartilho sua preocupação com o atual estado do processo de confirmação" no Senado. "Está claro que os senadores não ficariam satisfeitos enquanto não tivessem acesso a documentos internos sobre conselhos (que ela deu) em seu trabalho na Casa Branca, cuja revelação minaria a capacidade do presidente de receber conselhos francos." A afirmação parece afastar da lista de possíveis nomeados o secretário da Justiça, Alberto Gonzalez, que chegou onde está graças a sua afinidade pessoal e política com Bush.

Num prelúdio da batalha que um Bush politicamente enfraquecido enfrentará para encontrar um nome viável para assumir a vaga da juíza Sandra Day O'Connor, os democratas acusaram o presidente de ter se rendido aos radicais de sua base. "A direita radical do Partido Republicano matou a nomeação de Harriet Miers", afirmou o líder da minoria democrata no Senado, Karry Reid, de Nevada, que a havia recomendado a Bush. Analistas republicanos disseram que o presidente satisfará a ultradireita ao escolher um novo nome para a Suprema Corte. Sem controle de sua bancada, em baixa nas pesquisas e ameaçado de ter seu poder efetivo esvaziado pelo conjunto de problemas que enfrenta, Bush corre ainda o risco de enfrentar deserções entre os moderados republicanos e não conseguir romper manobras de obstrução parlamentar que os democratas certamente usarão para bloquear candidatos da ultradireita à Suprema Corte.