Título: Os limites do tribunal supremo
Autor: Ivan Carvalho Finotti
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/10/2005, Aliás, p. J3

Criado há menos de cinco meses para fiscalizar o sistema jurídico brasileiro, o Conselho Nacional de Justiça já conseguiu emplacar decisões festejadas pelo opinião pública, como a resolução antinepotismo, publicada há 12 dias. Segundo o documento, tribunais de todo o País têm prazo de 90 dias para demitir todos os funcionários não concursados que sejam parentes ou casados com juízes.

E vem mais por aí, garante o professor de Direito Constitucional Joaquim Falcão, um dos 15 membros do Conselho atualmente presidido por Nelson Jobim, também presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). ¿Quem fez a pauta nesses primeiros meses foi a sociedade. Pauta obrigatória, da qual não podemos fugir. Enfrentar a questão do nepotismo, o que foi feito. Enfrentar a questão do teto salarial, o que será logo feito. Apurar casos de corrupção. O primeiro processo já foi aberto¿, afirma ele.

Diretor da Escola de Direito da FGV-Rio e ex-diretor da Faculdade de Direito da PUC-Rio, Falcão não concorda com a tese de que o STF esteja aparecendo demais, seja para interferir em processos de cassação, seja para soltar pai e filho da prisão, seja para recolocar senadores cassados no cargo. ¿O Supremo não age, reage. Só age quando provocado¿, escreveu, em entrevista por e-mail ao Aliás. Confira a seguir.

Na quinta-feira, o Supremo Tribunal Federal acatou o pedido da defesa de José Dirceu (PT-SP) e determinou que seja refeito o parecer que pede sua cassação. Até então, o ex-ministro vinha reclamando que não conseguia se defender e que no Brasil ninguém é inocente até que consiga provar. O senhor concorda com essa visão de Dirceu ou se trata de tática jurídica?

Considero como tática política que toca num tema caro à opinião pública: o poder intimidador discricionário ¿ às vezes excessivo ¿ das autoridades. Para o guarda de trânsito, qualquer motorista é por definição um infrator potencial. É apenas uma questão de tempo. Mas, como toda tática, essa também flutua ao sabor da conjuntura, que muitas vezes a contraria, como na decisão do Supremo de quinta-feira. O interessante nesse caso do deputado José Dirceu é que não é somente ele quem está em julgamento. O próprio Supremo também está em julgamento. Quem julga o Supremo é o povo, a opinião pública. Os ministros do Supremo não são representantes de si mesmos, mas do povo. A legitimidade do Supremo, sem a qual sua autoridade diminui, será tanto maior quanto mais suas decisões estiverem sintonizadas com os anseios de justiça da população. O professor Cláudio Souto diria com o sentimento de justiça do cidadão. Daí a importância tremenda da mídia na formação desse sentimento de justiça dos leitores/eleitores.

O Supremo inocentou o ex-presidente Collor de todas as suas acusações. Hoje Collor se diz vítima de um processo político (impeachment) e um inocente do ponto de vista jurídico. Essa situação poderá se repetir com José Dirceu?

Inexiste dependência ou correlação necessária entre condenação jurídica pelo Judiciário e condenação política pelo Legislativo. São âmbitos diferentes e infrações diferentes. Ambas estão previstas na Constituição. Agora, se a situação vai se repetir, é difícil prever. Mas já existe semelhança entre os dois casos. Ambos foram beneficiados pela opção do Supremo em defender o devido processo legal, a ampla defesa, contra decisões do Legislativo. O Supremo mandou a Câmara aumentar o prazo concedido para a defesa de Collor de uns insuficientes sete dias para um mínimo de 15 dias. Nem por isso Collor escapou do impeachment. Agora, o mesmo Supremo acatou o pedido do deputado José Dirceu e mandou refazer o parecer que pede a cassação do ex-ministro. Ontem, como hoje, em nome do devido processo legal. O risco que pode haver é que, em nome da proteção dos direitos do acusado, o Supremo acabe interferindo excessivamente no Legislativo. Desequilibre os poderes. Uma ponderação politicamente isenta é indispensável. Na verdade, existe um diálogo de surdos entre o Supremo e a opinião pública. O Supremo decide sobre a prevalência de princípios, a opinião pública quer falar do resultado sobre as pessoas envolvidas.

Ao longo da crise política, que já se arrasta há quase seis meses, o Supremo parece demonstrar uma mudança de comportamento. Manteve-se discreto no início das denúncias e hoje desempenha papel muito mais ativo. O senhor acha que está havendo excesso de protagonismo do Supremo?

Não. O Supremo não age, reage. Só age quando provocado. É o princípio da inércia do Poder Judiciário. Não foi discrição. Foi apenas ausência de provocação. Agora que os processos de cassação estão se completando, é natural que as partes recorram ao Supremo. Essa tendência deve se intensificar.

Muitos políticos envolvidos nos atuais escândalos tenderão, como já o fazem, a bater às portas do Supremo. Qual sua avaliação disso?

Acho salutar. O Supremo está funcionando. A democracia está funcionando.

Na semana passada, a imprensa noticiou como o presidente do STF, ministro Nelson Jobim, pareceu irritado com a derrota da liminar de José Dirceu. Editoriais disseram que o ministro se comportou como um militante. Qual sua opinião sobre a performance de Jobim, nesse caso?

No Supremo americano, um dia por semana os ministros se reúnem em sessão fechada, a que ninguém tem acesso. Nem a imprensa, nem mesmo assessores mais próximos, para que possam discutir os casos e tentar chegar a consenso. A reunião é fechada não somente porque dúvidas e confrontos existem, e é normal que assim seja, mas também porque, além das teses jurídicas, os temperamentos variam e discordam. Para a cultura pragmática americana o que interessa, porém, é o resultado da discussão, muitas vezes tão acalorada quanto as nossas. Qual a tese vencedora e qual a perdedora, é o que importa. A origem do ministro Jobim não é a magistratura, em que prevalece maior solenidade nos apartes. Sua origem é o Parlamento, como foi a de Aliomar Baleeiro (presidente do STF entre 1971 e 1973). O ritual e a veemência dos debates são claramente outros. Daí diferenças de estilo.

Ao final do juízo, em tom de desabafo, o ministro Jobim disse: ¿Esta decisão devolveu o poder de degola ao Congresso¿. Como o senhor viu essa declaração?

O grande dilema do Supremo tem sido optar entre garantir a independência do Legislativo e garantir a liberdade, a ampla defesa dos cidadãos. Ambos são valores protegidos pela Constituição, indispensáveis à democracia. A pergunta é: se o Legislativo, no processo de cassação de seus membros, toma uma decisão que afronta o direito de defesa do acusado, deve o Judiciário interferir na decisão do Legislativo ou não? Qual o limite da independência do Legislativo? Essa pergunta crucial está presente em quase todos esses casos levados ao Supremo. Em alguns deles, o [ENTREVISTA]ministro Jobim, como os ministros Eros Grau e Sepúlveda Pertence, acreditou que a ampla defesa do acusado deve prevalecer. O ministro Ayres Brito optou pela independência do Legislativo. O comentário do ministro Jobim é uma alusão à República Velha, quando a cassação do Legislativo, então denominada ¿degola¿, não estava sujeita a limites ou controle por parte do Judiciário.[/ENTREVISTA]

Na sexta-feira, o ministro Marco Aurélio concedeu liminar determinando que o senador João Capiberibe retome o cargo de senador dois dias depois de o presidente do Senado, Renan Calheiros, ter dado posse a outro. Como o senhor vê a interferência nesse caso, quando a decisão do Legislativo já estava consumada?

À primeira vista, trata-se da necessidade de cumprir um rito constitucional. Ou seja, a perda do mandato terá de ser declarada não pelo presidente do Senado, mas pela Mesa, e o senador Capiberibe deverá ter direito de se pronunciar. Acredito que não haverá novo julgamento sobre o que já foi decidido pela Justiça Eleitoral. O senador perdeu efetivamente o seu registro. A decisão do ministro Marco Aurélio não deverá trazer definitivamente de volta ao Senado o senador Capiberibe. Em todo caso, seria importante analisar melhor as peças do processo. Essa interferência no Legislativo é o preço que se paga por uma Constituição detalhista em excesso e por uma cultura jurídica formalista demais.

O ministro Nelson Jobim, como se sabe, é um presidenciável. Pelo menos é cotado para ser candidato à Presidência ou mesmo para compor uma chapa com Lula. Isso tumultua o bom funcionamento do STF? É a politização da casa?

Se tivesse havido impeachment e eleição indireta de novo presidente, o presidente do Supremo, quem quer que fosse ¿ ministro Jobim, ministra Ellen Gracie, ministro Gilmar Mendes ¿, seria candidato natural à Presidência da República. Pretendesse ou não. Nesses momentos, os países buscam estabilidade e preferem candidaturas suprapartidárias, candidaturas institucionais. Tanto o presidente do Supremo tem importância política nas horas de crise que, pela Constituição, quem preside a sessão do impeachment não é o presidente do Senado ou da Câmara ¿ é o próprio presidente do Supremo. Acresça-se a tanto a origem e vocação política do ministro Jobim, e está explicado por que muitos interpretam seus atos como de candidato.

Na semana passada, foi noticiado que o ministro Carlos Velloso justificou seu voto a favor da libertação de Paulo e Flávio Maluf com a seguinte frase: ¿Imagino o sofrimento de um pai preso na mesma cela do filho. Isso me sensibilizou¿. O que o senhor pensa dessa declaração?

Ao que consta, o fundamento decisivo de seu voto foi o reconhecimento de que os acusados não estavam intimidando testemunhas ¿ o doleiro no caso ¿, e assim dificultando a Justiça e merecendo, pois, a prisão preventiva. Tecnicamente, o doleiro não seria testemunha, e sim cúmplice nas infrações. Essa foi observação acessória.

Ainda sobre essa declaração: o correto seria esperar que os magistrados fossem frios, imparciais e acima de tudo discretos ou esse tipo de sensibilização é desejável?

Laurence Tribe, professor de Direito Constitucional de Harvard, é tido como o advogado que mais ganhou causas na Suprema Corte americana. Perguntaram-lhe qual o seu segredo: o mais completo banco de dados sobre cada ministro. Incluindo não apenas seus votos anteriores, doutrinas jurídicas que defende, formação jurídica, colégios e universidades que freqüentou e conferências que proferiu, mas também sua cor, sexualidade, se acredita ou não em Deus, romances que leu, vida social que leva, estrutura familiar, filmes a que assiste, tecnologia que utiliza, time de futebol, se já houve aborto na família, se serviu na guerra, e vários outros dados. Tribe vai buscar os fatos e argumentos capazes de seduzir este ou aquele juiz. Todos esses dados moldam ¿ uns mais, outros menos ¿ a interpretação que o juiz faz da Constituição. Não existe Constituição sozinha. Só existe a Constituição e sua circunstância, isto é, sua interpretação. O juiz é um ser humano como qualquer outro ¿ o que, porém, não justifica decisões fundamentadas apenas em sentimentos. Mas, daí a imaginar um juiz frio, que apenas retira da lei uma interpretação unívoca e racional, é endossar um mito que o regime autoritário passado difundiu nas escolas de Direito, por meio de doutrinas jurídico-ideológicas. Como Napoleão, que queria que a única interpretação racional de seu código fosse a dele. A razão sou eu! Na democracia é diferente. Por trás de cada razão, há emoção e interesses latentes.

Após a sessão que votou a libertação dos dois, o ministro Velloso foi fotografado sorrindo e cumprimentando o advogado de Maluf, José Roberto Batochio. Essa cena, exibida pelos jornais, é indesejável?

Foi uma oportuna foto jornalística de um desavisado cumprimento social. Provocou ilações inadequadas. Diariamente o ministro convive e às vezes senta lado a lado com o procurador-geral, com o acusador. Cumprimentam-se, trocam idéias, sorriem como qualquer mortal. Pode, pois, fazer o mesmo com o advogado do réu. O ministro Velloso está no Supremo há 15 anos. Sua marca é a respeitabilidade. No caso, afirma inclusive que esteve com o advogado da foto apenas três ou quatro vezes na vida.

Com tanto envolvimento com as causas políticas, o Supremo deixa de se ocupar de questões cruciais para a sociedade brasileira: como a descriminalização do aborto, a liberação das células-tronco para pesquisa, entre outros impasses. Criar jurisprudência e parâmetros para a sociedade em temas dessa natureza não seria uma contribuição mais útil (e mais esperada) do STF?

Causas eminentemente políticas não são incompatíveis com questões cruciais da sociedade. As estatísticas mostram que as causas políticas são de grande repercussão, mas de número muito reduzido. Mesmo assim, o Supremo tem andado longe de decisões que interessem mais aos cidadãos. Hoje o que rouba seu tempo são outras causas. A pauta do Supremo ainda está longe da pauta do povo. Somos, se não o único, pelo menos um dos únicos países do mundo com tantos artigos sobre funcionalismo público na Constituição. Isso não é matéria nem para a Constituição nem para o Supremo. Os maiores demandantes do Supremo são os governos. Disputas entre Estados, entre funcionários e seus governos, questões da Caixa Econômica, de impostos e do INSS, essas são as causas mais numerosas. Precisamos é desestatizar a pauta do Supremo. Mais sociedade e menos Estado.