Título: OMC - 'Sinfonia Eroica' ou 'Inacabada'?
Autor: Marcos Sawaya Jank
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/11/2005, Espaço Aberto, p. A2

A Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC) foi lançada na esteira da comoção causada pela tragédia de 11/9/2001. O seu mandato era ambicioso e prometia reduzir o desequilíbrio histórico entre a forte liberalização dos mercados industriais, desde 1947, e o persistente protecionismo agrícola, um setor posto de lado no sistema mundial de comércio. Em 2002, os EUA dobraram seus subsídios agrícolas com a aprovação da Lei Agrícola mais protecionista da sua História. Em 2003, a União Européia (UE) cortou alguns subsídios com mais uma reforma da sua Política Agrícola Comum, mas deixou setores importantes de fora (açúcar, por exemplo) e não melhorou as condições de acesso a seu vasto mercado consumidor. Às vésperas da reunião ministerial de Cancún, em 2003, EUA e UE divulgaram uma proposta que apenas somava suas respectivas posições defensivas em subsídios e acesso a mercados. Juntamente com Índia, China e outros 18 países em desenvolvimento, o Brasil constituiu o G-20, tentando resgatar o espírito de Doha na redução de subsídios e liberalização dos mercados dos países desenvolvidos.

Na ocasião, escrevi um artigo para a revista Época intitulado Um Réquiem para Cancún. Infelizmente, a previsão se confirmou e a reunião ministerial terminou num impasse melancólico, com forte discordância em relação aos métodos para cortar subsídios e tarifas, agrícolas e industriais. Nos últimos dois anos, o G-20 mudou a geometria das negociações, atuando de forma coesa e pragmática, com boa representatividade política e capacitação técnica, demonstrada nas dezenas de propostas apresentadas em cada item da negociação agrícola. O Brasil soube liderar com maestria o grupo, que hoje simboliza o principal resultado da política comercial do atual governo.

A chegada da reunião ministerial de Hong Kong, em dezembro próximo, finalmente deu novo impulso à rodada. EUA e UE acabam de apresentar propostas que praticamente fecham a fase dos métodos e modalidades nos principais itens da negociação agrícola. Neste momento já se sabe como serão feitos os cortes de subsídios e tarifas, mas ainda falta definir o mais importante: sua magnitude. Na minha opinião, tais propostas permitem que a rodada possa ser concluída em breve. O maior problema é definir se os cortes serão profundos ou irrelevantes, qual a dimensão dos novos mecanismos de exceção que se pretendem criar para determinados países e/ou produtos e, principalmente, se a rodada afetará os níveis correntes de proteção, ou seja, se ela será capaz de ir além do status quo das políticas agrícolas e comerciais dos membros.

O ministro Celso Amorim afirmou que "estamos nos 38 minutos do segundo tempo, com placar ainda indefinido; só que, ao contrário do futebol, na Rodada de Doha todos podem ganhar." É verdade! E para isso é preciso que os times parem de jogar na retranca.

Em acesso a mercados, o maior esforço precisa vir do Continente Europeu. Sob pressão, na semana passada a UE apresentou um documento bem desequilibrado, que apenas mostra seu negociador com as mãos amarradas pelos países membros. Além disso, suas ex-colônias da África, do Caribe e do Pacífico não querem perder as condições preferenciais de acesso ao mercado europeu e lutam, ao lado da UE, contra uma abertura ampla e sem discriminações.

O papel central desempenhado pelo G-20 obriga o grupo a ser menos defensivo em acesso aos mercados dos países em desenvolvimento. Como esses 20 países respondem por 70% da população rural do mundo, é de esperar que alguns de seus membros temam reduzir suas próprias tarifas de importação e ainda tentem abrir múltiplos mecanismos de exceção, que se acumularão sobre um pequeno conjunto de produtos. A leitura isenta e racional dos números indica, porém, que há muito espaço para o G-20 aceitar cortes mais ambiciosos e regras mais simples e limitadas para o tratamento de produtos sensíveis.

Em subsídios domésticos, é necessário apertar os EUA na aceitação de cortes mais profundos e disciplinas adicionais que evitem novos escapes, além de forçar a imediata implementação das decisões do contencioso do algodão e avançar na proposta feita por Pedro de Camargo Neto, cujas bases já foram apresentadas em entrevista neste jornal.

Na área de bens manufaturados, também há espaço para avanços por parte dos países em desenvolvimento, desde que o dossiê agrícola caminhe a contento. É injusta a crítica dos países ricos de que estaríamos travando a rodada. Basta comparar os temas que estão sendo discutidos em agricultura e em bens manufaturados para concluir que sem maiores avanços na primeira área não há por que avançar na segunda.

Enfim, nesta fase pré-Hong Kong, o que dará ambição à Rodada de Doha é o nível de afinação das orquestras nacionais e a sua harmonia dentro das principais coalizões. O Congresso americano deixará o seu negociador (USTR) avançar na redução dos subsídios? A França deixará a Comissão Européia avançar em acesso a mercados? A Índia e a China não vão pôr o G-20 excessivamente na defensiva?

Se os maestros e músicos não desafinarem demais dentro de casa, acredito que, desta vez, o encontro das 148 orquestras não vai terminar em outro Réquiem, em Hong Kong. A melhor opção seria que este megaencontro de orquestras terminasse tocando algo parecido com a revolucionária Sinfonia Eroica, de Beethoven, que levou o público da época a uma viagem para muito além das águas seguras de suas predecessoras. A pior opção seria uma conclusão similar à da Sinfonia Inacabada, de Schubert, que, ao contrário de Beethoven, com pouco apoio dos grandes patronos da época, não conseguiu lutar por sua música. A primeira audição da obra inacabada de Schubert só foi ouvida 37 anos após a morte do compositor! Alea jacta est.