Título: Problemas do governo democrático
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/11/2005, Espaço Aberto, p. A2

Com esse título, o proficiente então ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Oswaldo Trigueiro, em 1976, publicava um livro admirável, cujo primeiro capítulo trata da Crise Legislativa. "Em matéria de separação, aferramo-nos a Montesquieu, como se ele fosse o revelador de um dogma imutável, e fechamos os olhos à revisão crítica, que já afastou como inteiramente inútil uma teoria que Villeneuve considera mesmo uma manifestação da crise do senso comum. A separação dos Poderes já não tem sentido diante da realidade constitucional contemporânea, principalmente na Europa Ocidental, onde a Grã-Bretanha nunca respeitou a idéia da separação." Hoje o eminente jurista acrescentaria, além do confronto do Legislativo com o Executivo de presidencialismo imperial, dono das medidas provisórias, outro capítulo, mas agora no tocante às relações do Legislativo com o Judiciário, envolvendo o poder das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs). O embrião da crise no âmbito do Legislativo está no caso Waldomiro Diniz, cuja CPI foi impedida de se instalar. Só um recurso ao Supremo permitiu que a CPI dos Bingos fosse realizada e nela volta a aparecer o intocável Waldomiro Diniz, amicíssimo assessor do ex-ministro José Dirceu. Antes, porém, a relação do Congresso Nacional com o Supremo sofrera conflitos que desmentem o espírito de Montesquieu, que nós, os constituintes de 1987/88, escrevemos na Constituição, logo no Título I, Dos Princípios Fundamentais: "Os Poderes da União são independentes e harmônicos entre si." Os problemas que contestam esse princípio fundamental surgiram nos trabalhos das Comissões Parlamentares Mistas de Inquérito (CPMIs), a partir das chicanas de que se serviram os parlamentares apanhados com a boca na botija, no inexplicável recebimento de dinheiro de fundo suspeito ou ilegal, o que a eles é defeso, sob pena de perda do mandato.

Ora, a tradição das CPIs, a mesma dos inquéritos civis ou militares, é indiciar, se for o caso, o parlamentar para ser julgado na sua Casa de origem. O "sacrossanto direito de defesa" é obrigatório, mas no plenário da devida Casa do Parlamento. Na CPI há apenas o direito de ser ouvido e acompanhado de advogado, impedido este, porém, pelo Código de Processo Penal, de orientar o congressista nas respostas que der, ou se negar a dá-las, exceto se estiver convocado como testemunha. Uma vez ouvidos e constantes do relatório das CPMIs em curso, e por estas considerados suscetíveis de perda de mandato, foram encaminhados ao Conselho de Ética, novidade em relação a 1993, quando o relatório era diretamente enviado à Mesa Diretora da Casa correspondente, que iniciava o processo a ser julgado pelo júri, que era o plenário de seus pares. Assim foi que o direito de defesa, na Câmara dos Deputados, em 1994, absolveu oito dos deputados constantes de recomendação da CPI para perda de mandato. Nunca tivemos problemas decididos no Judiciário.

No corrente ano, os encaminhados à Mesa foram distribuídos inicialmente ao corregedor. Logo houve recurso ao STF, sob alegação de não terem tido o direito de defesa. Essa tramitação, em 1993, seria descabida, pois ao corregedor não cabia julgar se a atribuição da CPI lhe estava subordinada. Apareceu a oportunidade, assim, do recurso antes descabido, em prejuízo de tempo. Cumprindo a sentença do Judiciário, a cada um dos requerentes foi aberto o prazo regular para apresentarem a defesa. Estavam eles tão interessados na preservação do "sacrossanto direito" que muitos deles fugiram de receber a notificação devida.

Agora, estão eles protegidos pela interminável apresentação de recursos do deputado José Dirceu. De início, tentou recurso no Supremo para sustar a tramitação do processo de cassação, sob o argumento de que as acusações de que era alvo deveriam ser julgadas na Justiça, eis que era ministro de Estado, e não deputado em atividade no Congresso. Perdeu, por 7 votos a 3. Em seguida, perdeu por 13 a 1 no Conselho de Ética. Recorreu novamente ao Supremo. O ministro Eros Grau acolheu o recurso, porque o Conselho usara dados obtidos na CPMI dos Correios. Justifica-se minha estranheza, porque não tenho o "notório saber" do ministro. Mas, em seguida, determinou a releitura do relatório aprovado no Conselho de Ética por 13 votos a 1, expurgado das provas consideradas inadequadas, o que significa nova votação, precedida de novo pedido de vista, anteriormente feito por uma deputada petista.

Muitos parlamentares, doutores em lei, e o presidente do Conselho de Ética criticam a nova sentença, que vêem como obtendo "intromissão indevida da Justiça". Dirceu vai ganhando tempo, seu objetivo. Precatando-se de ilação de que isso é devido à amizade de Dirceu com o presidente Lula, o presidente da Câmara se apressou a negar: "Amigo é aquele que assiste junto a jogo de futebol, é compadre, visita o outro nos fins de semana, vai com ele assistir a filmes ou jantar." Há quem afirme ser o ministro Eros Grau amigo de Dirceu. Mesmo que seja, é um magistrado que não mancharia sua reputação ilibada que lhe garantiu a indicação pelo presidente Lula ao Supremo, aprovada no Senado em votação secreta.

A cientista política Lúcia Hippolito diz que "a manobra de Dirceu é de fôlego curto, pois, a cada adiamento, mais cresce animosidade da opinião pública e mesmo do conjunto da Câmara contra ele. Ao contrário de conseguir convencer a sociedade de sua inocência, Dirceu passa mais a imagem de alguém que não quer largar o osso". Quem diz, porém, que ele está preocupado com a opinião pública?