Título: Onda de suicídios atinge os ianomâmis
Autor: Talita Ribeiro
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/10/2005, Vida&, p. A39

"Não quero voltar a Uauaris para não ter vontade de morrer." Após duas tentativas frustradas de suicídio, o índio Geraldo Sanumá decidiu permanecer em Boa Vista, capital de Roraima, a mais de duas horas e meia de avião de sua aldeia. Os sanumás são índios do tronco ianomâmi, uma das etnias mais abundantes no Brasil e cuja reserva ocupa mais de 9 milhões de hectares da floresta amazônica. Eles vivem em Uauaris, no extremo noroeste de Roraima, na fronteira com a Venezuela, e são vizinhos dos iecuanas. Apesar de não partilharem a mesma cultura e herança lingüística, os dois povos são unidos por uma luta velada contra um "feitiço" que se espalha como epidemia: o suicídio. De acordo com dados da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), quatro sanumás se mataram neste ano, num processo que parece ter sido reflexo do quadro endêmico de suicídios ocorrido nos últimos dois anos entre seus vizinhos iecuanas. A maioria dos casos acontece entre jovens de 12 a 18 anos.

Segundo o missionário Ademir Santos Silva, de 42 anos, que vive em Uauaris desde 1991, o método é quase sempre o envenenamento com timbó, um tipo de cipó tóxico usado para a pesca. "Eles cavam um buraco na terra, cobrem com uma folha de taioba, esmagam a raiz e vão acrescentando água e misturando, até que ela solte um caldo esbranquiçado, que é o veneno. Depois, tiram a folha com o líquido e bebem", conta Silva. O missionário diz que o cipó foi trazido da Venezuela com o objetivo de otimizar a pesca e que, uma vez plantado, ele se espalha como uma praga. "Foi com a chegada do cipó que começaram os suicídios", diz.

MOTIVOS BANAIS

Levando em conta que a Organização Mundial de Saúde (OMS) considera aceitável um caso de suicídio em cada grupo de 10 mil pessoas, a proporção entre os índios é assustadora. Em 2004, foram registrados oito suicídios entre os pouco mais de 200 iecuanas brasileiros. Até então livres do "feitiço", no início deste ano, os sanumás também se tornaram protagonistas da crescente onda de suicídios. "Todos os dias alguém tenta o suicídio. Eu nem consigo mais dormir. Toda vez que ouço um grito acho que acharam algum índio envenenado", conta Silva. A maioria das tentativas é frustrada por ele e pela equipe de saúde da Funasa, que conta com um médico, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e Agentes Indígenas de Saúde.

O missionário lembra de todos os cinco casos entre os sanumás (o primeiro aconteceu em 2002). Em janeiro deste ano, uma jovem de menos de 18 anos descobriu que o marido estava aprontando e decidiu fugir com os filhos para a tribo de seus parentes. A sogra lhe tomou as crianças e ela decidiu se matar. Ninguém levou a sério a ameaça porque, até então, sanumá não se matava. Depois de sua morte, seu marido, Geraldo Sanumá, também tomou veneno, mas foi salvo. Os outros três casos deste ano seguem a mesma linha: motivos banais, brigas do dia-a-dia e pequenas desavenças. "Nada que não pudesse ser resolvido como sempre foi entre eles: com um grito", garante Silva. "Os sanumás sempre viram o suicídio dos iecuanas como se fosse uma fraqueza. Hoje, dizem que o mal que ronda a aldeia dos vizinhos chegou aos ianomâmis", diz Silva.

EPIDEMIA

O auto-extermínio indígena não é um fato novo. Ele figura desde muito tempo entre várias etnias e com propósitos diferentes. Para os suruvahas, habitantes das margens do Rio Purus, no sul do Amazonas, o suicídio é cultural, tem a ver com a aceitação da alma no paraíso. Outras tribos o usam como meta religiosa. Desde 1995, no entanto, o suicídio indígena foi apontado como uma epidemia entre os guaranis e os caiovás de Mato Grosso do Sul. Condenado pelos costumes e crenças, e considerado fruto de feitiçaria, ele passou a ser praticado por jovens e crianças, por motivos banais. Há poucos anos descobriu-se a mesma situação em algumas aldeias do Alto Rio Negro, no Amazonas, e, mais recentemente, entre os iecuanas e sanumás de Uauaris.

Para o antropólogo e professor do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas, Ademir Ramos, um fator pode ser observado na maioria das localidades afetadas: a falta de perspectiva no futuro. "Todos os povos que perdem a perspectiva de amanhã buscam o próprio fim. Seja por motivos materiais, como no caso dos guaranis e dos caiovás, que ainda não conseguiram a demarcação de suas terras e vivem em condições de extrema pobreza, como em outros casos, em que os índios têm o território, mas são dependentes economicamente da sociedade regional", explica. Ele defende que o suicídio não é um fenômeno natural, e sim produto do contato de índios com brancos.

O presidente da Missão Evangélica da Amazônia, Milton Camargo, afirma que, por conseqüência dos suicídios, os iecuanas estão se dividindo em dois grupos e deixando Uauaris. "Um grupo vai se juntar aos parentes na Venezuela e o outro se muda para outro lugar, onde acreditam que os espíritos do mal não os encontrarão."

O antropólogo Ademir Ramos tenta explicar a situação citando o sociólogo Durkein. "O suicídio não é uma decisão voluntária e sim uma patologia social. O índio passa a ser produto do meio onde ele vive", diz. "Não adianta demarcar terras indígenas e esquecer que os índios precisam de uma política econômica para se desenvolver. Tem também de ser levada em conta a presença dos brancos dentro da aldeia, que pode causar uma confusão de identidade étnica."