Título: O debate foi adiado
Autor: Ribamar Oliveira
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/10/2005, Economia & Negócios, p. B2

Existe um consenso hoje entre os especialistas em finanças públicas de que está na hora de colocar um freio nas despesas correntes da União. A razão é simples: a sociedade brasileira não aceita mais o aumento da carga tributária. Se a receita não pode subir, a despesa precisa parar de crescer. Do contrário, o cenário será de grande dificuldade fiscal no futuro. O economista Raul Velloso achava que a crise fiscal poderia mostrar a sua cara já neste ano. O governo foi salvo, segundo Velloso, por um inesperado aumento da receita (R$ 11 bilhões somente de janeiro a setembro), devido principalmente ao excepcional comportamento da arrecadação do Imposto de Renda (IR) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). A carga tributária este ano vai subir e, assim, o novo aumento das despesas da União será devidamente acomodado.

Mas a expectativa é a de que, a partir de 2006, não ocorra mais aumentos significativos da arrecadação e que a carga tributária se estabilize. Se este for o caso, a crise fiscal estará instalada porque as despesas previdenciárias e os gastos com assistência social, principalmente os programas de transferências de renda, não param de subir.

O governo conseguirá acomodar a situação durantes alguns anos com cortes ainda mais drásticos nos investimentos em infra-estrutura. Mas isso tornará a qualidade do ajuste fiscal ainda pior do que já é. Portanto, a prudência e a racionalidade indicam que o caminho deve ser a criação de um teto para as despesas. O economista Fabio Giambiagi, do IPEA, propôs um teto de 17,5% do Produto Interno Bruto (PIB) para as despesas correntes, com uma queda de 0,2% ao ano durante um certo período. As despesas correntes não incluem os gastos com investimentos e com o pagamento dos juros das dívidas.

O objetivo da proposta é dar sustentabilidade às contas públicas no médio e longo prazo e, ao mesmo tempo, abrir espaço para duas coisas essenciais: o aumento dos investimentos públicos e a redução da carga tributária. A área econômica comprou a proposta de Giambiagi, mas com uma redução das despesas de apenas 0,1% ao ano. Essa proposta foi apresentada pelo ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, durante reunião da Câmara de Política Econômica na última quarta-feira, e não recebeu o apoio necessário dos ministros de outras áreas, principalmente da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff.

É compreensível a reação contrária de ministros de um governo que está em meio a uma crise política de grandes proporções, cujo término ainda não é previsível. Também não é fácil articular a aprovação de uma emenda constitucional tão complexa neste momento em que o Congresso mal consegue aprovar medidas provisórias que estão prestes a perder validade. Além disso, existe a preocupação dos ministros da área política do governo com a montagem de uma estratégia de campanha para reeleição do presidente Lula, que certamente não passa pela promessa de maior arrocho fiscal.

Esse debate foi adiado, mas a realidade das contas públicas o recolocará na ordem do dia em algum momento do futuro. O mais provável é que seja após as eleições presidenciais, por ocasião da definição da política econômica do novo governo. Ao propor o início desse debate agora, a preocupação do ministro Paulo Bernardo era livrar o futuro presidente, qualquer que seja ele, da atribuição de ter que apresentar uma proposta de emenda constitucional em 2007 para a prorrogação da CPMF e do mecanismo de Desvinculação das Receitas da União (DRU), que vencem em 31 de dezembro daquele ano.

A idéia de Bernardo é deixar o futuro presidente livre, no início do governo, para propor ao Congresso outras reformas fundamentais, como a política e a da Previdência Social. Sem uma profunda mudança das regras previdenciárias, a fixação de um limite para as despesas correntes torna-se impraticável, pois esta é a despesa que mais cresceu nos últimos dez anos.

O teto de 17,5% do PIB para as despesas correntes da União, com redução de 0,1% ao ano, não é uma medida fácil de ser executada na prática. Isto porque algumas despesas estão indexadas à variação do PIB, como é o caso dos gastos com a saúde; outras ao salário mínimo, como é o caso do menor benefício previdenciário; e outras ainda à receita corrente líquida, como é o caso do limite para os gastos com pessoal. Todas essas vinculações elevam automaticamente os gastos e dificultam o trabalho com um teto para as despesas, que cai a 0,1% do PIB ao ano.

Um exemplo destas distorções: a regra instituída pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) para as despesas totais com pessoal ativo e inativo do setor público, que na época foi festejada como um grande avanço institucional, agora está criando sérias dificuldades para a execução orçamentária. No caso da União, o limite fixado para o gasto total com pessoal foi de 50% da receita corrente líquida. Desse total, 40,9% são para gastos com pessoal do Executivo; 2,5% para o Legislativo, 6% para o Judiciário; e 0,6% para o Ministério Público.

Como a receita corrente líquida da União cresceu muito nos últimos 10 anos, em decorrência da forte elevação da carga tributária (que subiu quase 1% do PIB a cada ano), as despesas com pessoal dos três Poderes ficaram bem abaixo dos limites definidos. Assim, a tentação para utilizar essa "margem" legal e reajustar os salários dos servidores foi sempre muito grande. O Judiciário, o Legislativo e o Ministério Público da União caíram nessa tentação e deram aumentos reais expressivos aos seus servidores ao longo dos últimos anos, sem ultrapassar o limite definido na LRF. Apenas o Executivo controlou os seus gastos com pessoal. A remuneração média dos servidores do Ministério Público da União é de R$ 9,33 mil por mês, a do Judiciário é de R$ 9,09 mil, a do Legislativo de R$ 8,8 mil, enquanto a do Executivo de apenas R$ 3,35 mil.

No início de setembro, os presidentes de todos os tribunais superiores do País encaminharam ao Congresso Nacional um projeto de lei que estabelece um novo plano de carreira para os servidores do Judiciário. Esse projeto, se aprovado, vai custar R$ 4,5 bilhões aos cofres públicos.O orçamento de pessoal do Judiciário este ano é de R$ 11,28 bilhões, enquanto o limite dado pela LRF é de R$ 17,7 bilhões (6% da receita corrente líquida da União). Os presidentes dos tribunais argumentam, na justificativa do projeto, que existe "uma margem de crescimento legal" de R$ 6,4 bilhões para as despesas com pessoal do Judiciário. O ministro Paulo Bernardo está convencido de que não é possível controlar despesas sem corrigir esse tipo de distorção.