Título: 'Não temos excesso de poupança, mas escassez de investimento'
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/10/2005, Economia & Negócios, p. B4

WASHINGTON - Nomeado em 2002 para uma das cadeiras do conselho de governadores do Federal Reserve Board, Fed, o banco central dos Estados Unidos, o então professor Ben Shalom Bernanke despediu-se da vida acadêmica e do posto de diretor do Departamento de Economia da Universidade de Princeton dizendo aos amigos que não pretendia voltar. Confirmou a aposta vendendo a casa em Nova Jersey, onde morava com a mulher, professora de espanhol, e os dois filhos adolescentes, e comprando uma nova casa para a família, em Washington. Em junho, ao final de seu mandato no Fed, foi nomeado presidente do Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca. Na semana passada, foi escolhido pelo presidente George W. Bush para suceder o lendário Alan Greenspan à frente do Fed a partir de 1º de fevereiro do ano que vem. Recebida com aplausos no mercado, na comunidade acadêmica, nos meios oficiais e nos editoriais dos grande jornais, a nomeação de Bernanke, de 51 anos, será examinada em detalhe durante sabatina de confirmação perante a Comissão de Bancos do Senado dos Estados Unidos, em novembro. Um dos raros economistas acadêmicos chamados a presidir o Fed nos 92 anos da instituição, Bernanke é um especialista em política monetária que defendeu, em vários trabalhos, as virtudes do regime de metas de inflação. Este será um dos temas centrais de sua audiência pública com os senadores, que deve estender-se por alguns dias.

O economista Edwin ¿Ted¿ Truman é autoridade no assunto. Dois anos atrás, ele publicou O Regime de Metas de Inflação na Economia Mundial, o mais abrangente estudo elaborado até hoje. Um ¿scholar¿ no Instituto de Finanças Internacionais (IIF), em Washington, desde 2001, Truman é também um dos grandes conhecedores do Fed e do sistema de formulação da política econômica internacional dos Estados Unidos. Dirigiu a Divisão Internacional do banco central americano por mais de 20 anos e foi, depois, secretário do Tesouro adjunto para Assuntos Internacionais na administração Clinton. Na última quinta-feira, ele falou sobre a nomeação de Bernanke.

Qual é o significado da escolha de Ben Bernanke para suceder Alan Greenspan?

Bernanke é um bom economista com experiência significativa no Federal Reserve. Nesse sentido, era nome mais provável para assegurar uma transição suave e a continuidade das políticas do Fed.

Alguns comentaristas disseram que a preferência de Bernanke pelo regime de metas de inflação deriva da importância que ele atribui à transparência no papel do banco central. Para os defensores dessa tese, um regime explícito de metas tornaria a economia menos dependente, no final, do julgamento de uma pessoa ¿ no caso, Greenspan ¿ e tornaria o processo decisório mais institucionalizado do que é hoje.

Uma das vantagens do sistema de metas de inflação é a transparência, ou seja, os participantes no mercado têm melhor sentido do que o banco central fará e por que. Meus estudos sobre essa questão sugerem que o regime de metas de inflação melhora o conjunto de combinações possíveis de desemprego e inflação, deslocando para baixo a curva de Philips (refere-se à relação inversa entre desemprego e inflação, ou seja, quanto menor a inflação maior tende a ser o desemprego e vice-versa) e também melhora o conjunto de combinações possíveis de variabilidade de crescimento do PIB e de inflação. Mas não se trata de um regime baseado em regras. Dependendo de como ele é operado, o banco central retém muita liberdade de ação, ancorada em metas de inflação.

O Fed deveria adotar um regime de metas de inflação?

A contribuição que isso traria para o desempenho econômico dos EUA ou à coordenação da política econômica internacional pelo Fed seria, na melhor das hipóteses, pequena. Não vejo um lado negativo, mas não espero que o Fed se mova nessa direção imediatamente. A decisão cabe à Comissão Federal do Mercado Aberto (FOMC). O primeiro passo seria adotar uma meta de inflação, que não é o mesmo que adotar um regime de metas de inflação, e o mais cedo que isso poderia acontecer seria 2007.

Economistas que conhecem Bernanke dizem que fala claro e, em contraste com Greenspan, não deixa muita margem para interpretação sobre o que quer dizer. Dadas as nuanças que muitas vezes estão embutidas em decisões de política econômica, isso é bom ou ruim?

Clareza no discurso é um ponto positivo. Por outro lado, a política monetária e a interpretação de tendências econômicas nem sempre se prestam à clareza. Há sempre uma dose de incerteza. Por isso, o presidente do Fed precisa ser cuidadoso para não sugerir que as coisas são claras quando elas são incertas. É fácil interpretar mal ou superinterpretar declarações aparentemente claras.

O professor James Galbraith, da Universidade do Texas, disse que, a julgar por discursos recentes, Bernanke será mais crítico do que Greenspan sobre a situação fiscal dos EUA, a dependência financeira dos americanos da poupança externa e os desequilíbrios resultantes no sistema financeiro internacional. O senhor concorda?

Não conheço o pensamento de Bernanke sobre o déficit. Acho que ele foi cuidadoso em apoiar os cortes de impostos propostos pelo presidente (Bush) sem endossar a visão de que os déficits não importam. O discurso que fez sobre a superabundância de poupança global pode ser interpretado como um endosso do déficit dos EUA e da redução dessa superabundante poupança. Acho que trabalhos subseqüentes sugerem que sua análise está errada. Não temos um excesso de poupança mundial, mas uma escassez de investimento global. Presidentes do Fed são atraídos para esses debates. Depois que eles estabelecem sua autoridade como presidentes, podem ser usados no futebol político dessas discussões. Mas, raramente eles próprios são decisivos nos debates. A exceção ocorre quando um presidente da República propõe, como fizeram Clinton e, até certo ponto, Bush, uma mudança drástica de política econômica. Isso ajuda a inocular o presidente (do Fed) contras as críticas da direita e da esquerda.

O professor Galbraith afirma também que Bernanke vê como uma anomalia o fato de países emergentes serem hoje exportadores de capital e estaria mais inclinado do que Greenspan a incentivar uma mudança .

Não conheço a visão de Bernanke sobre as economias emergentes. Seu discurso sobre a poupança global pode ser interpretado com de apoio à visão de que estamos fazendo um favor aos mercados emergentes ao receber a poupança que eles não têm como investir em casa. Bernanke é intelectualmente curioso, mas Greenspan também era. Se isso o levará a interessar-se ainda mais do que Greenspan pelas economias emergentes, não sei. Pode-se esperar que ele se incline mais nessa direção simplesmente porque ele vem de uma geração mais jovem.