Título: Os ancestrais políticos de Bush
Autor: Sean Wilentz
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/10/2005, Internacional, p. A18

Desde a eleição de Ronald Reagan, em 1980, a força do conservadorismo americano tem confundido profundamente os historiadores e intelectuais. Antes de Reagan, uma geração de estudiosos influentes havia afirmado que o pensamento de centro-esquerda americano, liberalismo, era a essência de todo o ideário político dos EUA e deveria ser sempre assim. Em meados dos anos 70, muitos observadores se perguntavam se um Partido Republicano aliado ao movimento conservador poderia sobreviver muito tempo.

A História desmentiu esses julgamentos. Mas muitos liberais de destaque continuam a ver o conservadorismo contemporâneo como uma cortina de fumaça retórica destinada a enganar as massas ¿ enquanto os conservadores freqüentemente apontam a origem de seu movimento não antes de 1955, quando William F. Buckley Jr. fundou a revista National Review, misturando eleitores religiosos e pró-empresariado. Tal pensamento, contudo, menospreza a coerência e a durabilidade da política conservadora nos EUA. A mistura da aversão dos empresários à regulamentação governamental com o populismo cultural tradicionalista e o moralismo cristão que sustenta o Partido Republicano de hoje é uma filosofia de governo respeitável, ainda que mal costurada, surgida muito antes do surto direitista que preparou o terreno para a presidência de Reagan.

Alguns analistas comparam os atuais republicanos à formidável máquina política, financiada por corporações, que sustentava o presidente William McKinley no fim do século 19. A admiração que Karl Rove tem expressado pela máquina reforça a conexão histórica. Mas nem conservadores nem liberais reconheceram totalmente que a receita político-ideológica do governo Bush foi inventada décadas antes de McKinley, por uma instituição americana quase esquecida: o Partido Whig dos anos 1830 e 40.

Os whigs surgiram em 1834 em oposição ao antielitista Partido Democrata de Andrew Jackson. Furiosos com Jackson pela destruição do todo-poderoso e privado Segundo Banco dos Estados Unidos e de suas impetuosas reivindicações de autoridade presidencial, os whigs conquistaram simpatizantes no país todo dedicados a proteger as empresas e reduzir a regulamentação econômica federal. O enriquecimento dos ricos, proclamavam eles, acabaria por enriquecer todos os demais. Combinando um conservadorismo pró-empresas voltado ao homem comum com uma visão cristã evangélica das virtudes e vícios sociais, eles conquistaram a presidência duas vezes nos anos 1840 e controlaram a Câmara ou o Senado na maior parte da década. No Senado, Henry Clay, de Kentucky, e Daniel Webster, de Massachusetts, projetaram a influência do Partido Whig muito além do Capitólio com seu poder de oratória. Na medida em que temas perenes moldam a política americana, é notável como tantas idéias centrais e slogans do conservadorismo contemporâneo renovam velhos apelos whigs.

A sociedade da oportunidade e o ataque ao governo intruso: o conservadorismo moderno baseia-se na máxima segundo a qual os democratas e liberais prosperam numa enorme e dispendiosa burocracia federal que desencoraja a iniciativa individual e despeja dinheiro público sobre sua incompetente base política. Em sua posse, Reagan denunciou o ¿governo de um grupo de elite¿, referindo-se inequivocamente aos democratas liberais parasitas.

Nas décadas de 1830 e 40, os whigs disseram coisas semelhantes sobre os jacksonianos. Acusaram Jackson de instituir uma tirania executiva e seus seguidores, como escreveu o jornalista whig Horace Greeley, de transformar o governo numa ¿agência dominada pela corrupção, opressão e roubo¿. Desafiando o despotismo de Jackson, escreveu um comentarista da Carolina do Norte em 1835, os whigs se mobilizaram ¿em defesa da LIBERDADE contra o PODER¿. Os whigs, como Reagan e sucessores, contestavam particularmente a regulamentação federal de assuntos empresariais e financeiros. Um típico editorial whig de 1837 acusou os democratas de combater ¿os comerciantes e os interesses comerciais¿ a fim de sustentar o poder federal.

Um século e meio antes da eleição de Reagan, os whigs elaboraram as idéias básicas da economia do lado da oferta (incentivos fiscais para que os mais ricos produzam mais a fim de beneficiar toda a sociedade). Promoveram o romance entre o risco e o investimento privado e uma visão convincente, embora simplista, dos EUA como ¿país de homens que vencem na vida sozinhos¿, frase muito usada pelos whigs. Estas visões ressurgiriam nas celebrações, por parte de Reagan e Newt Gingrich, de uma futura ¿sociedade da oportunidade¿, mais tarde reformulada por George W. Bush como a ¿sociedade da propriedade¿. Os whigs também rejeitaram como demagógicos os ataques jacksonianos às classes privilegiadas ¿ assim como Bush, disputando a eleição de 2000 como um ¿conservador compassivo¿ unificador, descreveu as críticas dos oponentes ao poder corporativo e aos benefícios fiscais para os ricos como uma campanha mesquinha ¿para promover a luta de classes a fim de avançar¿.

Há, é claro, diferenças significativas entre os whigs e os conservadores de hoje. Governando numa era anterior às corporações privadas gigantes, os whigs consideravam os gastos federais com a infra-estrutura da nação indispensáveis para o desenvolvimento econômico. Neste ponto, o moderno dogma republicano afasta-se dos princípios whigs ¿ diferença que tem causado graves constrangimentos para o governo Bush.

Populismo conservador: os conservadores modernos se apresentam como o partido do contribuinte oprimido e do pequeno empresário ¿ cidadãos que Reagan elogiava como ¿americanos que trabalham duro¿. De modo similar, importantes agentes whigs, como a eminência parda Thurlow Weed, de Nova York, refinaram um vocabulário e uma imagem pública adequados a um partido da maioria trabalhadora americana oposto a políticos egoístas.

A retórica whig afastou-se fundamentalmente da arrogância e da melancolia aristocráticas que os conservadores da velha guarda haviam herdado do extinto Partido Federalista. No palanque, o exemplo do congressista whig e atirador do Tennessee Davy Crockett, com roupa de couro, foi amplamente imitado. Até oradores de estilo clássico como Webster aprenderam a deixar Cícero de lado nas campanhas, apresentando-se como grandes democratas ¿ e ameaçando bater em quem dissesse o contrário. Os whigs também inventaram personagens satíricos que, em jornais e palcos, ridicularizavam políticos que ¿conseguem pegar o dinheiro do povo e transferi-lo para sua conta¿. Enquanto retratavam a si e a seus simpatizantes ricos como gente do povo, os whigs mostravam os democratas como políticos profissionais delicados, bebedores de champanhe e alienados. Os apelos ajudaram os whigs a conquistar a presidência em 1840 com a famosa campanha da ¿cabana de madeira e sidra¿, apresentando seu candidato bem-nascido, William Henry Harrison, como um herói plebeu que vivia numa casa humilde e consumia a bebida comum no meio rural.

Os republicanos de hoje repetiram a maquiagem. Nos anos 1970, o movimento conservador adotou Reagan, caubói bronzeado de Hollywood, como líder no lugar de Barry Goldwater, sombrio e de óculos, na grande jogada do populismo conservador moderno. Mais tarde, a temática populista conservadora foi ampliada com a transformação de Bush pai, patrício nascido em Massachusetts, num amante do torresmo, e de seu filho educado em Andover, Yale e Harvard num rude pioneiro texano. Os democratas, enquanto isso, continuam presos em sua imagem pública de estéreis liberals do ¿queijo brie e vinho Chablis¿.

Moralismo, reforma e a guerra da cultura: o Partido Republicano de hoje deve muito à aliança política com os renascidos cristãos evangélicos conservadores, parte de um ataque conservador mais amplo aos liberais como inimigos da moralidade tradicional. Esse ataque reforça a idéia fundamental da ¿sociedade da oportunidade¿: o fracasso pessoal resulta não de desigualdades econômicas e sociais, e sim da fraqueza moral de indivíduos gastadores, negligentes, contrários à lei, devassos e preguiçosos ¿ exatamente o tipo de gente (acusam os conservadores) que os liberais querem afagar com gastos sociais desnecessários e destrutivos.

Os whigs descreviam os jacksonianos com termos bastante parecidos. ¿Onde quer que você encontre um ateu amargo, blasfemo, um inimigo do Casamento, da Moralidade e da Ordem Social¿, afirmou o New-York Daily Tribune de Greeley, ¿pode ter certeza de um voto a favor (dos jacksonianos)¿. Ao entrar no Partido Whig em 1835, o deputado John Bell, do Tennessee, soou como um precursor de William Bennet, declarando: ¿Estamos, há oito ou dez anos, num estado contínuo de guerra moral.¿ O sucessor de Jackson na presidência, Martin Van Buren, um viúvo, foi alvo de especial abuso como um homem de moral duvidosa, incluindo acusações fantásticas dos whigs de que ele realizava orgias secretas na Casa Branca.

Os whigs foram recrutados desproporcionalmente entre os devotos da enorme onda de renascimento evangélico conhecida como Segundo Grande Despertar. O evangelismo rapidamente levou uma minoria de whigs do norte à cruzada antiescravidão. Mas os whigs da corrente principal desprezavam a política abolicionista e estavam ocupados com esforços de inspiração evangélica para impor a moralidade pública com coercivas campanhas de abstinência e bom comportamento aos domingos. Os democratas opunham-se a esses esforços, defendendo a separação entre Igreja e Estado a fim de evitar que o Congresso, como escreveu um jacksoniano, se tornasse o ¿tribunal adequado para determinar quais são as leis de Deus¿.

O destino foi cruel com o Partido Whig. Seu primeiro presidente, Harrison, ficou doente no gelado dia da posse, em 1841, morreu um mês depois e foi sucedido por um ex-democrata da Virgínia, John Tyler, que alguns no partido não consideravam whig. O outro whig eleito presidente, Zachary Taylor, general da reserva, durou só um pouco mais que Harrison, abatido por um ataque de gastroenterite aguda em 1859, depois de 16 meses na Casa Branca. Nos governos de Tyler e Taylor, a aquisição de vastos territórios ocidentais da guerra contra o México levou a sérias disputas sobre a extensão da escravatura, que nenhum dos dois grandes partidos suportou. Os democratas acabaram perdendo os partidários abolicionistas do norte na década de 1850 e foram dominados por senhores de escravos do sul. O Partido Whig desmoronou totalmente: a ala abolicionista uniu-se aos dissidentes democratas para formar o Partido Republicano em 1854; os sulistas ingressaram no rebanho democrata escravista ou se perderam em vãs tentativas de restaurar o entendimento.

O triste fim do partido ajuda a explicar por que os conservadores republicanos de hoje que estudam História resistem a qualquer comparação com os whigs. Se pensam nos anos 1830, antes da era McKinley, como faz Karl Rove volta e meia, eles preferem se comparar aos jacksonianos, protegendo o ¿homem pequeno¿ perante o governo federal. Mas os jacksonianos, diferentemente dos conservadores de ontem e hoje, também combateram as elites financeiras e mercantis do país e procuraram reduzir o poder daquilo que Jackson chamava de ¿riqueza associada¿ sobre a economia e a política. O argumento de Rove distorce a natureza das realizações políticas do conservadorismo contemporâneo.

Ao juntar os princípios whigs ao dogma dos direitos dos Estados sulistas, e atualizando ambos, os conservadores modernos criaram uma nova mutação muito mais obstinada que o velho Partido Whig. Revigorando as doutrinas centrais dos whigs sobre a oportunidade que passa dos ricos para os pobres, os republicanos enriqueceram uma plutocracia americana inimaginável no início do século 19 e conquistaram seu apoio financeiro, assim como sua lealdade política. Adotando a versão sulista do evangelismo, preferindo a santidade pessoal ao reformismo altruísta dos whigs evangélicos do norte e recrutando a direita cristã em sua guerra cultural, eles construíram uma base política muito maior e mais leal que a dos whigs.

Os conservadores de hoje, é claro, não devem ver o futuro de seu movimento com complacência. Falta de sorte à parte, as tensões entre os whigs abolicionistas do norte e os whigs escravistas do sul finalmente comprovaram a desagregação do partido. E mesmo no auge os whigs tiveram de esconder conflitos entre os populistas bebedores do partido e seus moralistas abstêmios, os puritanos antiquados e os mais flexíveis funcionários públicos e diretores partidários. O mais íntimo aliado político de Thurlow Weed, o whig (e mais tarde republicano) William Henry Seward, reclamou no início dos anos 1840: ¿Meus princípios são `liberais¿ demais, filantrópicos demais, se não for presunção afirmar isso, para meu partido.¿ Os conservadores modernos enfrentam imperfeições similares, incluindo divisões entre os velhos Estados confederados e os velhos Estados unionistas, que puseram muitos republicanos ¿moderados¿ do norte, como Lincoln Chaffee e Christine Todd Whitman, contra a diretoria linha-dura do partido.

E, no entanto, o conservadorismo moderno sobreviveu a todas as previsões de queda. Mesmo hoje, abalado por furacões, escândalos e uma guerra cada vez mais impopular, o Partido Republicano promove princípios conservadores e fala uma língua política prontamente entendida pelos eleitores. Esses princípios e essa língua são respeitáveis e, como proclamados pelos republicanos de hoje, mais convincentes que a mensagem confusa e incerta de seus oponentes. Por mais inadequadas que as políticas de privatização do partido possam parecer, a ligação dos conservadores com o passado americano, freqüentemente mal compreendida, ainda pode conduzi-los com sucesso rumo ao futuro.