Título: Motosserras, tiros e ameaças no coração da devastação no Pará
Autor: José Maria Mayrink
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/10/2005, Vida&, p. A22

Foi uma operação de guerra. Quando quatro fiscais do Ibama chegaram à área desmatada da Fazenda São José, em Santana do Araguaia, extremo sul do Pará, um tiro ecoou na floresta que resta em pé. Os fiscais recuaram, enquanto oito soldados da Polícia Militar avançavam entre os esqueletos das árvores calcinadas por uma queimada recente. Descobriram um acampamento improvisado, onde os cortadores de madeira se recolhiam após uma jornada dura de trabalho. Eram 17 horas, mas o sol ainda estava quente. Dez minutos depois, a situação estava sob controle. Os peões entregaram armas e instrumentos ¿ duas espingardas e meia dúzia de motosserras.

O engenheiro agrônomo Marcos Vinícius de Mendonça, coordenador da expedição, surpreendeu-se. Não esperava pela descoberta de uma devastação de 400 alqueires, ou 2 mil hectares, a apenas 3 quilômetros da pista asfaltada que liga Santana do Araguaia à divisa de Mato Grosso. ¿A gente sempre acha mais coisa do que parece ter¿, disse o fiscal Ideraldo Tavares de Queiroz. A equipe do Ibama, que incluía também Adão de Souza e José Pereira, chegou à Fazenda São José com base em denúncias de moradores.

A partir de informações de empregados da propriedade, os fiscais chegaram ao suposto dono, um médico chamado José Flávio de Moraes, que mora em Boituva (SP). A notificação por crime ambiental foi preenchida em nome dele. Localizado pelo Estado, 24 horas depois, em Boituva, onde tem fazenda, ele disse que houve um equívoco. ¿Não sou eu, não tenho terras no sul do Pará, deve der um homônimo¿, alegou. Como receberá a notificação, terá de provar isso ao Ibama. Se fosse o dono da São José, teria de apresentar ao Ibama autorização de desmatamento, averbação da reserva legal (80% da área) e memorial descritivo da fazenda.

Esse é o caminho que todos os fazendeiros e seus empregados têm de percorrer, quando são pegos em flagrante. Armas, motosserras e outras máquinas apreendidas, como tratores e caminhões, só serão devolvidas se seus donos tiverem recibos de compra, além de autorização para desmatar. Em geral não têm, mas as fichas de autuação abrem caminho para levar a investigação adiante. Com base nos dados colhidos em campo, os fiscais conferem as coordenadas fornecidas por satélite que permitem identificar a dimensão exata das queimadas. Mais difícil é chegar aos responsáveis. ¿Os empregados dão informações erradas ou incompletas para confundir a fiscalização¿, disse o engenheiro florestal Norberto Neves de Sousa em relatório enviado a seu chefe, o gerente do Ibama em Marabá, Ademir Martins dos Reis.

Os fiscais fazem um trabalho arriscado, porque os infratores punidos reagem. Norberto e sua equipe escaparam de uma emboscada, em setembro, depois de terem autuado a mulher do fazendeiro Delir Gallo, dono da Fazenda Buriti, na estrada do Iriri, região de São Félix do Xingu, na Terra do Meio. Desde então, Norberto passou a trabalhar na sede do Ibama em Belém, enquanto a Polícia Federal apura o caso.

Na operação iniciada há 20 dias na região de Cumaru do Norte, Redenção e Santana do Araguaia para coibir os desmatamentos e queimadas, os fiscais têm a proteção da PM e o apoio logístico de um pelotão de 24 homens do 52º Batalhão de Infantaria de Selva, de Marabá. O Exército não participa da ação, mas intimida os criminosos com suas armas e seus três caminhões. A tropa passou duas semanas em Vila Brilhante, a 80 quilômetros das fazendas autuadas neste mês, e, depois do referendo, se deslocou para a Fazenda Cristalino, na região de Santana do Araguaia. Ali bem perto, na Fazenda Estrela de Maceió, em Cumaru do Norte, três posseiros morreram assassinados na semana passada, num conflito por posse de terra.

A ação dos fiscais com cobertura militar assusta colonos, vaqueiros, capatazes e posseiros. ¿Os home tão aí dentro da mata¿, informou o tocador de gado Natalino Eduardo da Silva, de 52 anos, numa estrada deserta da região de Vila Brilhante, apontando para a Fazenda São Joaquim, de Carlos Alberto Mafra Terra, uma das propriedades autuadas neste mês. ¿O Ibama tem pouca gente, mas com os novos concursados vamos chegar a 20 fiscais na minha área¿, informou Martins, o gerente de Marabá. Em todo o Pará, são 70, dos quais 50 saem a campo, como está fazendo agora a equipe baseada em Conceição do Araguaia, sob a coordenação de Ivan Borel do Amaral, na repressão aos desmatamentos de Cumaru do Norte. Entre as fazendas notificadas, estão também a Nova Caracol , de Tarley Helvécio Alves; a Caboclo, de Almir Ricci Jr; a Mudriré, da Agropecuária Rio Mudriré e duas Santa Cecília, uma de Jamel Cecílio e outra de Basílio Gatti. Os desmatamentos nessa área somam mais de 30 mil hectares nos últimos meses.

A Caboclo, que fez um desmatamento de 15 mil hectares, é conhecida também como fazenda da Amil, diz o Ibama, porque foi com esse nome que chegou a Brasília uma denúncia sobre queimadas. O assessor da presidência da Amil, Reinaldo Scheib, informou ao Estado que a empresa de assistência médica não tem terras no Pará e atribuiu a confusão ao fato de Ricci, o dono da fazenda, ser meio-irmão do presidente do grupo, Edson de Godoy Bueno. Procurado pela reportagem, a assessoria de Ricci, que mora no Rio, informou que ele está viajando.

Confusões e equívocos se explicam pela precariedade de informações coletadas pelo Ibama nas fazendas autuadas, sempre a partir de seus empregados. Na quarta-feira, Adão de Sousa e José Pereira enfrentaram dificuldade para identificar o responsável por um desmatamento na margem direita do Rio Xingu, numa fazenda que, pelos dados disponíveis, pertenceria a Jairo Machado Rezende, irmão de Iris Rezende, ex-governador de Goiás e atual prefeito de Goiânia. Os fiscais emitiram a notificação em nome dele, mas o gaúcho Luiz Carlos Mariano dos Reis, de 56 anos, que recebeu o documento quando o avião dos fiscais desceu ao lado de sua casa, garante que o dono agora é ele.

¿Fiquei apertado com o negócio d¿ocês, porque comprei esses 350 alqueires (1.750 hectares) do Fabiano no ano passado para amansar a fazenda e iniciar uma criação de búfalos¿, disse Reis, pedindo mais prazo, além dos dez dias dados pela fiscalização, para procurar os responsáveis pelo desmatamento. O suposto novo dono alega ter pago R$ 110 mil pela gleba, mas não tem recibo nem sabe o nome completo de Fabiano, um atravessador de terras conhecido na região. O fogo limpou toda a área.

A fiscalização do Ibama descobriu que no Pará se desmata também nas áreas ocupadas por posseiros e assentados apoiados pelo governo federal. Na Fazenda Cristalino, que foi comprada da Volkswagen, o Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra) autorizou a derrubada de árvores em áreas que antes pertenciam à reserva obrigatória (de 50% na época) da fazenda. O governo comprou 55 mil hectares para fazer reforma agrária, deixando com pecuaristas a parte já desmatada. Técnicos regionais do Incra alertaram para a ilegalidade do negócio, mas Brasília deu ordem para que fosse feito assim. ¿Os posseiros estão derrubando a floresta até na serra, que é área de preservação permanente¿, disse um fiscal.

¿Os posseiros e os sem-terra podem derrubar, eu não posso¿, revolta-se o pecuarista Evandro Mutran, de Belém, cuja família cultiva e exporta castanha no Pará há quase 60 anos. Uma de suas fazendas, de 8 mil hectares, foi invadida por 40 sem-terra, em Eldorado do Carajás. Segundo o pecuarista, posseiros e sem-terra estão vendendo ilegalmente as matas das áreas ocupadas. Quase não se vê mais pau-brasil e a extração do mogno, a madeira mais nobre, foi proibida. ¿O que resta vai embora por qualquer preço, pois os madeireiros só pagam de R$ 150 a R$ 200 por árvore adulta.¿ Nas queimadas, quase nada se aproveita, porque tudo vira carvão em dois ou três anos. A cinza que escorre pelo chão contamina e escurece a água que os bois bebem nas represas e igarapés.