Título: Franceses identificam papila que capta gordura
Autor: Cristina Amorim
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/11/2005, Vida&, p. A32

Ela ajuda na seleção apropriada do alimento e melhora a digestão em roedores; desequilíbrio nesse mecanismo pode estar ligado a preferência por comida gordurosa

Doce, salgado, azedo, amargo e umami. Estes são os cinco sabores que os mamíferos reconhecem, de acordo com os cientistas - o último, definido há apenas cinco anos, identifica o glutamato monossódico, presente em carnes, frutos do mar e queijos envelhecidos. Agora, mais um gosto entra neste cardápio: a gordura. Um grupo de pesquisadores franceses descobriu a molécula que forma uma "papila gustativa" própria para identificar e captar ácidos graxos, gorduras essenciais para o organismo mas que, em alta quantidade, podem provocar problemas de saúde, como uma taxa alta de colesterol. Os resultados estão publicados na edição deste mês da revista especializada The Journal of Clinical Investigation (www.jci.org).

Essas papilas são proteínas que se localizam em cima de uma das células gustativas nas laterais da língua, que formam "botões gustativos" espalhados pelo órgão. Elas ajudam a gordura que já foi inicialmente quebrada pela saliva a entrar na célula, onde é metabolizada.

Isso acontece pelo menos em ratos e camundongos, dois mamíferos (além do homem) que são declarados amantes da gordura: eles buscam espontaneamente os lipídios quando têm escolha. O ser humano foi deixado de lado, por enquanto, até os cientistas descobrirem como estudar sua papila de forma não invasiva.

A médica Nada Abumrad, da Universidade de Washington no Missouri (EUA), que não participou do estudo, escreve um artigo na mesma revista que acompanha a apresentação dos resultados pelos franceses. Segundo ela, a existência de uma papila só para sentir a gordura ajuda os mamíferos a escolherem o alimento correto. Afinal, os ácidos graxos são importantes fontes de energia para a maioria das células.

"Apesar de a experiência sensorial da gordura poder levar a um sério vício por comida e problemas de saúde, seu objetivo é guiar a seleção apropriada de comida e também melhorar a digestão", afirma.

GENE EM NOCAUTE

A pesquisa foi dividida em duas partes. Seguindo indícios de estudos anteriores, primeiro os franceses "desligaram" um gene, o CD36, em camundongos modificados. O resultado é que, ao contrário do normal, esses animais não deram a mínima para a gordura, "o que sugere que o CD36 possui um papel importante neste fenômeno", explicou ao Estado o líder da pesquisa, Philippe Besnard.

A maioria das conseqüências da falta de gordura foi desastrosa. A energia para movimentar o corpo veio da glicose, o que provocou uma hipoglicemia. Os camundongos sem o gene CD36 - e, portanto, sem produzir a proteína CD36 - se saíram muito mal em exercícios físicos e tiveram seu metabolismo alterado. Como esperado, a redução no consumo de ácidos graxos teve suas vantagens. Os roedores mostraram menos propensão à arteriosclerose.

Em ratos, Besnard e seu time buscaram o lugar exato das papilas e descobriram que elas se encontram especialmente na parte de trás e nas laterais da língua.

CAUSA E EFEITO

Na segunda etapa, eles estudaram como a gordura, quando captada pela papila, conduz uma série de reações no corpo. As terminações nervosas ligadas à célula gustativa identificam a molécula e o cérebro liga o produto ao gosto de gordura.

Enquanto isso, outra mensagem é passada pelo sistema digestivo no momento que a proteína CD36 tem contato com o lipídio - mesmo quando os ratos eram "enganados" e não engoliam acepipes gordurosos.

Em dez minutos, cresce a quantidade de suco pancreático, antecipando a chegada do alimento. Além disso, também foi observado um aumento imediato de triglicérides no sangue, o "pacote" onde o lipídio é armazenado no corpo para ser queimado como energia mais tarde, quando necessário.

"Estas mudanças digestivas, que acontecem de forma independente à ingestão de qualquer lipídio, parecem levar à otimização da digestão de uma dieta rica em gordura e à absorção por antecipação de sua chegada ao intestino delgado", diz Besnard. "Novamente, este evento parece ser ligado ao CD36, uma vez que o processo não foi reproduzido nos camundongos com o gene silenciado."

PERIGO

Curiosamente, os cientistas trabalham na região de Borgonha, em Dijon, área conhecida pela boa mesa. Só que, na pesquisa, eles deixaram de lado a tradição de gourmets e focaram um problema comum em culturas ocidentais: a obesidade.

Segundo o grupo, o desequilíbrio deste mecanismo molecular que descobriram pode estar ligado à compulsão por comida e à preferência permanente por alimentos gordurosos. " Ele pode levar ao ganho extra de peso quando há um desequilíbrio ambiental ou físico ", sugere Besnard.

Para o otorrinolaringologista Pedro Luiz Albernaz, da Universidade Federal de São Paulo , o estudo é interessante experimentalmente, mas uma extrapolação para os homens não deve ser feita. "Nas pessoas, a sensação de saciedade vem quando o alimento atinge a última parte do intestino delgado. Neste animais, não existem indicativos de que eles ficaram satisfeitos pela ação do receptor."