Título: Paciente que furou fila faz 3.º transplante
Autor: Ricardo Westin
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/11/2005, Vida&, p. A28

Autorizada pela Justiça a desobedecer fila, ela passou por cirurgia porque fígado transplantado 4.ª-feira não estava em boas condições

Menos de uma semana após seu segundo transplante, a paulista Eliane Lopes Jimenes, de 39 anos, teve ontem de ser submetida a mais uma cirurgia para receber outro fígado. A operação, realizada no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, durou seis horas. A paciente reagiu bem à cirurgia. Eliane é uma das duas mulheres a quem a Justiça, considerando o grave estado de saúde, deu o direito de furar a longa fila dos pacientes que aguardam um transplante de fígado no Estado de São Paulo. Na fila de 3.800 pessoas, ela estava no 635º lugar. A outra mulher, Erma Aparecida Pereira, de 42 anos, antes de ser operada no Hospital Beneficência Portuguesa, também na capital paulista, estava no 1.159º lugar. Por decisão judicial, ambas foram operadas na quarta-feira passada.

Segundo o boletim médico de ontem, Erma continua internada na UTI da Beneficência Portuguesa, mas com "quadro clínico estável". Ela já havia passado por um transplante antes. Foi operada de novo porque os remédios, por defeito de fabricação, não fizeram efeito e seu organismo rejeitou o fígado.

No caso de Eliane, descobriu-se agora que o órgão transplantado na semana passada não estava em boas condições. Apresentou sinais de insuficiência e começou a necrosar. Isso, segundo os médicos que a operaram, ocorre em cerca de 5% dos transplantes. O problema começou a afetar outros órgãos, como os rins, o que deixou seu estado de saúde ainda mais grave.

REGRAS NOVAS

A regra atual dos transplantes de fígado, que vale para todo o País, determina que os pacientes sejam atendidos por ordem de chegada à fila, independentemente do estado de saúde.

Caso não tivessem recorrido à Justiça, Eliane e Erma provavelmente morreriam na fila. A espera costuma durar anos.

Para o transplante feito ontem, Eliane não precisou recorrer à Justiça. A lei garante prioridade na fila àqueles que precisam de um retransplante em até 30 dias após a operação.

Das 6.800 pessoas que aguardam um fígado no Brasil, mais da metade - cerca de 3.800 - está em São Paulo. Só no Estado, 455 pessoas morreram neste ano enquanto aguardavam a sua vez na fila.

Por pressão dos próprios pacientes, o Ministério da Saúde está revendo as regras da fila de transplante de fígado. Uma câmara técnica já decidiu que o critério será, em vez da ordem de chegada, a gravidade do estado de saúde. Os pacientes que estiverem correndo mais risco de vida serão os primeiros.

O novo critério deve começar a valer do início do ano que vem, assim que o Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DataSUS) concluir o programa de computador que determinará a gravidade da saúde dos pacientes. Nesse software, serão colocadas as informações de três tipos de exame de sangue, que indicam o risco de morte do doente dentro de três meses. Esses exames precisarão ser feitos periodicamente. "A avaliação do estado de saúde será objetiva", diz Amâncio Paulino de Carvalho, diretor do Departamento de Atenção Especializada do Ministério da Saúde.

Um dos médicos da câmara que delineou as futuras regras da fila de espera é o hepatologista Hoel Sette, do Hospital das Clínicas da USP. "Transplante de fígado é uma emergência. Não pode esperar. O que importa é a gravidade", diz. "A regra atual é falha. É como se determinasse a um pronto-socorro que atenda os pacientes por ordem de chegada, e não os casos de maior urgência."

CARTA

O transplante ao qual Eliane se submeteu ontem foi o terceiro de sua vida. O primeiro foi há 12 anos. O segundo, na semana passada. Tudo por causa de uma cirrose biliar que parecia ter sido curada com o primeiro transplante, mas voltou neste ano.

O marido, Vagner Jimenes, de 40 anos, vendo a saúde de sua mulher se deteriorar, chegou a se mudar para a Paraíba, onde a fila por um fígado é bem menor que a de São Paulo. Mas em nenhum dos dois Estados a vez dela chegou a tempo. Foi por isso que recorreu à Justiça.

"A situação era desesperadora. Por causa da doença, minha mulher tinha coceiras insuportáveis. Ela se coçava a ponto de se ferir e ter hemorragias pelo corpo todo. Só dormia com calmantes", contou.

Ontem, na sala de espera do hospital, ele recebeu a carta de uma mulher que dizia ser a primeira da fila em São Paulo. "Fico feliz que o senhor tenha tomado a atitude de entrar na Justiça, pois acredito que sua esposa, de fato, estava precisando mais do que eu. Todos em minha família estamos rezando", escreveu.

A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo criticou a decisão da Justiça. "Foi uma injustiça brutal contra os outros mais de 3 mil pacientes que aguardam a vez na fila", disse o secretário Luiz Barradas Barata.