Título: Seita dominante no país teme a perda de poder
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Fonte: O Estado de São Paulo, 02/11/2005, Internacional, p. A16

Os muçulmanos alawitas, minoria que domina a Síria há décadas, sentem que o governo está cada vez mais corrupto e distante deles

O corpo do ministro do Interior, Ghazi Kanaan, descansa em um caixão, envolto numa bandeira síria e com quatro exemplares do Corão encadernados em couro nos cantos. Kanaan morreu no dia 12. As circunstâncias em que foi tirado de cena um dos homens mais poderosos da Síria, um interlocutor entre a seita muçulmana conhecida como alawita, que há muito tempo domina o país, e um governo que os membros dessa seita vêem cada vez mais como distante e corrupto, continuam misteriosas. Suicídio, disseram os funcionários, encerrando o caso no dia seguinte à morte de Kanaan. Um parente, Mazen Kanaan, sorriu. "Ele era um homem de confronto. Suicídio é uma fuga. Ele não era homem de fugir", afirmou. Então, como ele morreu? perguntaram. "Isso cabe a vocês tentarem saber", respondeu.

A hora da morte de Kanaan também levantou suspeitas. Só recentemente Kanaan havia sido interrogado em uma investigação da ONU que implica funcionários de alto escalão no assassinato do ex-primeiro-ministro libanês Rafic Hariri.

Na política às vezes brutal da elite síria, na qual a violência vem intercalada com crueza, Kanaan, de 63 anos, era um homem de muitas faces: um alawita que abriu o próprio caminho como homem forte, político combativo e potencial concorrente ao poder. Aqui em sua cidade natal, e na região ao redor, ele era algo mais: uma espécie de senhor feudal que favorecia os membros da minoria alawita (12% da população síria), cultivando seu apoio e defendendo seus interesses. Para eles, sua morte - assassinato ou suicídio - tornou-se mais que o desaparecimento de uma figura próxima de um ícone. É um exemplo da crescente frustração e medo da seita religiosa que foi a espinha dorsal nos 35 anos de domínio do Partido Baath e ainda é vista como a viga mestra da permanência do presidente Bashar Assad no poder.

"Ninguém pode substituí-lo. Talvez em mil anos alguém como ele apareça", disse Mazen Kanaan, na mansão de Ghazi Kanaan. "As pessoas que precisam de ajuda não têm mais a quem recorrer."

São dias difíceis para os alawitas sírios. Em seus sentimentos talvez haja pistas da vulnerabilidade do governo de Assad, que enfrenta uma crise por causa da investigação da ONU. Em cidades como Bihamra, onde há uma profunda ansiedade nesta época de discórdia, os alawitas deverão suportar o peso de vinganças que remontam às décadas em que lideram o governo, os militares e os temíveis serviços secretos.

Essa apreensão surge à medida que aumenta a frustração de que o mesmo Estado ao qual estão ligados os abandonou. O Exército, que acabou com a histórica marginalização dos alawitas, é negligenciado e desrespeitado. Algumas de suas cidades continuam sem água corrente e, segundo muitos, o governo, apesar de ser da casta alawita, não os defende mais. "É como se as pessoas não soubessem que vivemos no país", disse Kharfan Khazin Ahmed, aposentado, da cidade alawita de Qarir.