Título: 'É muita cara-de-pau dizer que não devemos ver crime em caixa 2'
Autor: Roldão Arruda
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/10/2005, Nacional, p. A7

CAXAMBU - O cientista político Fábio Wanderley Reis, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), lamenta a maneira displicente com que os diferentes partidos tratam a questão do caixa 2, como se fosse um crime menor. Na opinião dele, esse tipo de ilegalidade abre caminho para fatos mais sinistros, como assassinatos. Na entrevista abaixo, o cientista político, uma das figuras mais festejadas no encontro anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), que se realizou nesta semana em Caxambu, Minas Gerais, também afirma que a perda do capital que o PT possuía no campo da ética é irrecuperável.

Num recente artigo sobre a crise política, o senhor usou a expressão "o joio e o joio", em vez de "o joio e o trigo". Por quê?

Porque pessoas de vários partidos têm dito em relação à crise, às denúncias de corrupção e de caixa 2, que é preciso separar o trigo do joio. O trigo seria o uso do caixa 2, um crime considerado sem muita importância, enquanto o joio seria a compra de votos pelo PT, o mensalão. Do presidente Lula, naquela entrevista que deu na França, ao senador Eduardo Azeredo, no discurso de renúncia da presidência do PSDB, todo mundo tem seguido nessa linha. É muita cara-de-pau. Dizem que devemos deixar de enxergar o crime. Eu discordo. Se a norma virou letra morta, vamos mudá-la, mas não deixar de ver o crime.

Não acha justificável estabelecer gradações entre os crimes?

Acho. Mas isso não significa aceitar como natural a ultrapassagem de limites legais. Uma vez aberta a porta da ilegalidade é inevitável cair em coisas muito mais sinistras. Embora nada tenha sido legalmente estabelecido até agora, há indícios poderosos de que o assassinato do prefeito Celso Daniel, de Santo André, tenha conexões com um esquema de caixa 2 para financiamento de campanhas do PT. Em Minas também há suspeitas em torno de uma história parecida, relacionada com a campanha de 1998 do PSDB, que é o assassinato da modelo Cristiane Ferreira.

Como viu a proposta no Senado de criação de uma CPI sobre caixa 2?

Ficarei surpreso se tiver resultados positivo. Investigar a fundo questões do caixa 2 é algo que não interessa a ninguém. A CPI parece mais uma manobra no sentido de levar à acomodação entre os partidos.

Parece cético em relação às CPIs.

Não acredito em muita coisa além de algumas cassações, porque não vejo agentes realmente interessados no aprofundamento das investigações. Acho que vivemos um momento de incertezas.

Por quê?

O principal partido do País, que era aparentemente uma construção institucional importante, com uma liderança singular, que era o Lula, está comprometido. O PT sofreu uma debandada forte em seus quadros e várias figuras de esquerda estão hostilizando o partido e o Lula. No PSDB também há incertezas, especialmente após as denúncias que levaram à renúncia de Azeredo.

Como vê as atuais relações entre Lula e o PT?

Estão cada vez mais esgarçadas. Um indicador claro foi o fato de Lula não ter comparecido para votar no primeiro turno das eleições do PT. Só foi no segundo por causa das reclamações que ouviu. Quando diz que foi traído, é evidente que está falando de pessoas do PT . É pouco provável que ele conte com um PT aguerrido e unido na campanha de 2006.

Acredita que, apesar desta crise, Lula concorrerá à reeleição?

A imagem dele sofreu e continua sofrendo um desgaste significativo perante a opinião pública. Mas ainda é um desgaste tênue em termos proporcionais e que parece ter estacionado. O Lula mantém um núcleo importante de seu eleitorado de apoio, situado no meio popular, e é a ele que deve se dirigir mais diretamente na campanha do ano que vem.

O senhor tem dito que o eleitorado brasileiro que decide as eleições é tosco. Poderia explicar?

O eleitorado popular é de fato politicamente tosco. Porque é pobre, desassistido, sem educação formal e sem condições de se inteirar a respeito dos assuntos políticos. É bastante passível de manipulação, especialmente pelos marqueteiros. Isso ficou evidente no referendo sobre desarmamento. No início, cerca de 80% dos eleitores eram favoráveis ao sim. Mas, quando começou a campanha nos meios de comunicação de massa, com aquela fórmula do bandido armado contra cidadão desarmado, numa concepção de direito civil como faroeste, o negócio começou a fazer água. Lembre-se que o Collor ganhou a eleição com o concurso do marketing. No fundo, o eleitorado do Lula e do Collor é o mesmo em boa parte e não adianta se iludir quanto a isso. Velhos componentes do populismo estão sem dúvida presentes na vida política do País, o que naturalmente coloca como possibilidade real o triunfo de um aventureiro na próxima eleição. O (pré-candidato do PMDB Anthony) Garotinho pode se viabilizar.

Não acha que a esquerda também mitificou Lula?

Certas parcelas sim. Viam nele o líder que, apesar de tosco, era intuitivo e sabia fazer a coisa certa na hora certa. Já ficou claro que essa imagem não corresponde aos fatos. Eu não me iludi. Já previa que no campo da economia ele tomaria medidas realistas para contornar o enorme preconceito que existia contra ele nos meios financeiros. Acho legítimo. Só não podia imaginar que esse tipo de realismo atingiria de forma tão destemperada o campo da ética, que era o seu grande capital simbólico do PT. No momento em que o Waldomiro Diniz, o assessor de seu segundo homem no governo, foi pilhado com a boca na botija e o Lula não deu um soco na mesa, começou a jogar fora, de maneira irrecuperável, todo esse capital.

Como foi que o PT, depois de toda a expectativa que criou ao longo de quase duas décadas, foi afundar nessa crise?

A explicação mais provável é uma certa cegueira ideológica - a idéia de que temos a causa justa e podemos usar todos os meios, até os pouco virtuosos, a idéia maquiavélica de que os fins justificam os meios. Um maquiavelismo tosco, ou uma caricatura dele, pois uma das coisas que identificam o maquiavelismo é a eficiência, que não se viu no PT.