Título: Bush admite diferenças com Lula, mas elogia afinidade na área social
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/11/2005, Nacional, p. A4

O presidente George W. Bush afirmou ontem ao Estado que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva "ocupa uma posição única" no hemisfério e deixou claro que considera vital o empenho do líder brasileiro na consolidação da democracia num hemisfério em que cresce a influência de líderes populistas como o venezuelano Hugo Chávez. "É importante que (o presidente Lula) esteja numa posição de influência com muitos paíes do hemisfério para promover os valores comuns aos quais ambos aderimos", disse Bush disse que tem uma boa relação pessoal com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e essa boa relação "surpreendeu muita gente". O presidente americano admitiu que os dois podem ter "diferentes sentidos políticos sobre as coisas", mas que, no fundo, compartilham os mesmos objetivos. Bush disse sentir que "uma parte da imprensa da América do Sul" teria tentado envenenar as relações entre os dois.

"As pessoas tinham essa visão de que eu era de um jeito e Lula de outro, e não haveria maneira de encontrarmos terreno comum", contou. E mostrou-se convicto da base dessas relações. "Compartilhamos a mesma preocupação profunda para ajudar a aliviar a fome a pobreza", assinalou. "Eu tenho respeito pelo presidente Lula. Ele é um homem interessante", afirmou Bush.

Segundo Bush, EUA e Brasil têm muito em jogo no Haiti. "É importante para nós trabalharmos de perto, juntos. E faremos isso". Ele distribuiu elogios ao Brasil - "é um grande país e os Estados Unidos reconhecem isso" - e a Lula - "ele é um homem interessante". Bush não parece impressionado com a proximidade política de Lula com arquiinimigos dos EUA, como Fidel Castro, Hugo Chávez e o boliviano Evo Morales.

"Certamente não é meu papel dar ao presidente Lula uma lista de amigos e dizer: o senhor não pode falar com esse ou aquele", afirmou. Segundo Bush, Lula decide "que assunto discutir com quem ele escolher". E deu a chave do sucesso nesse quesito: "Eu realmente nunca discuto com ele quem são seu amigos."

O Estado foi o único jornal brasileiro presente à entrevista; os outros foram o argentino La Nacíon e o panamenho La Prensa, além da agência EFE. Bush viaja amanhã para a Argentina, onde participa da 4.ª Cúpula das Américas, em Mar del Plata, e chega a Brasília no sábado à noite para sua primeira visita ao Brasil.

Aqui, Bush passará a maior parte do domingo na Granja do Torto, onde terá reuniões com o presidente brasileiro e será homenageado com um almoço. Sua participação na Cúpula também tem a ver com o Brasil e se deve a convite que Lula lhe fez quando foi recebido na Casa Branca em junho de 2003, numa reunião de trabalho que envolveu muitos ministros dos dois países, mas produziria poucos resultados.

Na entrevista, feita ontem à tarde no salão Roosevelt da Casa Branca, contíguo ao gabinete presidencial, Bush reconheceu que "a Alca empacou". Falou de seus objetivos na Cúpula - a promoção da democracia e a criação de empregos por meio da liberalização do comércio. Cada um dos quatro jornalistas foi inicialmente informado que poderia fazer até quatro perguntas, mas Bush, ao entrar, reduziu para duas.

O Estado fez três, mas, ainda assim, não foi possível perguntar ao presidente americano sobre o significado do compromisso solene de combater a corrupção no hemisfério, que ele, Lula e outros líderes firmaram na Cúpula Extraordinária das Américas, em janeiro do ano passado, em Monterrey, México. Eis os principais trechos da entrevista:

O senhor é sempre positivo, até efusivo quando fala de suas relações com Lula e das relações entre Brasil e EUA. Mas essa relação que é tão boa na superfície não produziu resultados concretos. Por quê?

Em primeiro lugar, temos de fato uma boa relação e acho que isso surpreendeu muita gente. As pessoas tinham essa visão de que eu era de um jeito e Lula de outro, e não haveria maneira de encontrarmos terreno comum. Sinto isso vindo de parte da imprensa na América do Sul. No entanto, nosso primeiro encontro no Salão Oval foi caloroso e cordial . Compartilhamos a mesma preocupação profunda para ajudar a aliviar a fome a pobreza. Podemos, de início, ter diferentes sentidos políticos sobre as coisas, mas ainda assim compartimos os mesmos objetivos. Por isso estabelecemos uma relação muito boa, cordial e franca.

Mas em termos concretos...

Em segundo lugar, o comércio entre Brasil e EUA está crescendo. Isso é importante. Não é uma coisa dada. A Alca (Área de Livre Comércio das Américas) empacou, eu concordo. Neste momento, a Rodada de Doha (da Organização Mundial do Comércio) ultrapassa a Alca como uma prioridade, porque a Rodada de Doha envolve não apenas nossa vizinhança, mas o mundo inteiro. Falei com o presidente Lula ontem (segunda-feira). Agradeci seu espírito de cooperação na Rodada de Doha. O Brasil é um ator muito importante em Doha e inspira o respeito não apenas dos EUA, mas da União Européia e de outros países, que podem ou não seguir sua liderança. Ainda assim, quando o Brasil fala, as pessoas ouvem com cuidado. A agricultura brasileira é um tema importante para o presidente Lula e para o povo brasileiro. E ele manifestou preocupação no passado, de que os EUA estariam indispostos a fazer uma declaração significativa sobre (redução de) subsídios agrícolas, o que eu fiz. Ele apreciou isso. Ambos ficamos desapontados com a resposta da União Européia. A teoria é que EUA e UE mostrarão boa-fé em (reduzir) subsídios agrícolas e o resto do mundo mostrará boa-fé (em liberalizar o comércio) em serviços, propriedade intelectual e outros temas que são importantes para fazer com que as negociações de Doha avancem. Meu único ponto é que há boa cooperação.

Em que áreas?

Doha não acabou ainda, mas é importante para o mundo , não só para o Brasil e os EUA, que haja progresso. E há um espírito de cooperação entre Brasil e EUA para fazer com que isso aconteça. Antes de reuniões ministeriais passadas (da OMC) falei com o presidente Lula sobre nossos ministros se reunirem antes, concordamos, e o processo foi adiante. Em nosso próprio hemisfério temos questões como o Haiti. O Brasil lidera a missão de paz, (tem feito) um trabalho muito bom através das Nações Unidas. Os EUA estão apoiando esse processo. Temos bastante em jogo no Haiti, como o Brasil, e é importante para nós trabalharmos de perto, juntos. E faremos isso. Estamos envolvidos com o movimento pela democracia lá, como está o Brasil. É um esforço colaborativo para promover a democracia na região. O Brasil é um país importante. É vital, seja em comércio, em ciência e tecnologia ou na promoção da democracia na região. O Brasil é um grande país neste mundo. E os Estados Unidos reconhecem isso.

Por várias razões, Lula mantêm relações bem próximas com os presidentes de Cuba, Fidel Castro, e da Venezuela, Hugo Chávez, e outros líderes, como Evo Morales, na Bolívia, que são considerado arquiinimigos dos EUA. Ao mesmo tempo, o senhor considera o Brasil um parceiro importante da construção da democracia na região. O senhor poderia explicar como funciona essa dinâmica de sua relação com Lula?

Em primeiro lugar, certamente não é o papel dos EUA ou meu papel dar ao presidente Lula uma lista de amigos (e dizer): o senhor não pode falar com esse ou aquele. Ele é o presidente devidamente eleito de um grande país. Ele toma decisões sobre que assunto discutir com quem ele escolher. Pode fazer sentido, em sua posição (como líder) desse país gigante da América do Sul, ter relações com todos os líderes na América do Sul e no Caribe. Nunca discuto com ele quem são seus amigos. Ao mesmo tempo é útil, às vezes, quando tenho preocupações sobre assuntos no hemisfério, ter a oportunidade de telefonar ao presidente Lula e dizer-lhe que tenho uma preocupação com esse ou aquele (líder) e perguntar: o senhor se importaria em dar uma olhada nisso? Pode ser a chance de trabalharmos juntos para resolver um problema.

O senhor já fez isso?

Eu já falei em termos gerais sobre minhas preocupações, sobre pessoas erodirem instituições democráticas (na região) . Jamais revelarei minhas conversações privadas com outros líderes. Mas fiz isso (consultar Lula). Ele ocupa uma posição única. Eu respeito isso. É importante que ele esteja numa posição de influência com muitos países do hemisfério, para promover os valores comuns aos quais ambos aderimos.

Qual é a sua opinião sobre o presidente Lula?

Eu tenho respeito pelo presidente Lula. Ele é um homem interessante. Obviamente, temos histórias diferentes, perspectivas diferentes, somos de países diferentes. Uma das minhas mais importantes iniciativas é baseada em grupos comunitário religiosos aqui nos EUA. Acredito que freqüentemente o governo enfrenta limites em sua capacidade de ajudar a salvar vidas. Há programas de base que são capazes de ir aos bairros mais humildes , às esquinas do desespero, e ajudar a salvar vidas. Em primeiro lugar, (é importante) ser motivado pelo amor. E ajuda que pessoas motivadas em sua ação pelo amor tenham acesso a dinheiro. E é isso o que fazem aqui (nos EUA) as iniciativas baseadas em grupos comunitários religiosos. Compartilhei essa visão com o presidente Lula como uma forma de lidar com os problemas mais intratáveis da sociedade. E ele compartilhou comigo sua visão sobre sua iniciativa contra a fome, que me impressionou. Ele é uma pessoa capaz de enfrentar essas questões difíceis de forma a fazer seu respeitado país um lugar melhor, como estou tentando fazer no meu.

Há sinais preocupantes para os EUA na América Latina, um crescente sentimento anti-americano. Os EUA estão perdendo influência na região?

Uma das razões pelas quais temos cúpulas como essa é para recordar às pessoas que queremos ser bons vizinhos e bons amigos. Partilhamos muitos valores. Visitarei a Argentina, um país que é uma orgulhosa democracia. Visitarei po Brasil, que teve uma eleição em paz. Vou também ao Panamá, que nem sempre foi uma democracia , mas é uma democracia em florescimento e terei a chance de dizer às pessoas que compartilhamos valores: justiça, o primado da lei, direitos humanos, adignidade humana, o direito das mulheres de participar de maneira igual na sociedade. Os valores são (contêm) mensagens muito poderosas. Direi às pessoas, aos líderem a quem estiver escutando lá que o nosso mercado está aberto e por que vocês não abrem seus mercados? Precisamos ter mercados abertos. Os Estados Unido tem uma economia forte e faz sentido para os países quererem comerciar conosco. Nós queremos comerciar com eles. A mensagem é emprego, democracia, honestidade, governos abertos. Olhe, eu compreendo que nem todo mundo concorda com as decisões que eu tomei. Isso não é único à América Central ou do Sul. Na verdade, há pessoas que discordam das decisão que tomei em todas as partes do mundo. Compreendo isso. É o que acontece quando você toma decisões. Mas eu sinto que as relações são boas. Enquanto a América não abondonar seus princípios , que são universais em sua aplicação, este país estará bem. Políticos passam. O que não muda é a importância de ser fiel aos princípios. E trabalhar com os nossos amigos nas América Central e do Sul que concordam com os mesmos princípios. Visitarei trê s pasíes que se baseiam claramente em princípios. Podemos não concordar em todos os temas. Eu compreendo isso. Não penso que boas relações significa que alguém tem que concordar com os EUA 100% do tempo. Boas relações é (ter) respeito mútuo e o desejo de trabalhar juntos para solucionar problemas comuns. E, mais importante do que tudo, aderir a valores comuns. A democracia não é um valor americano, é universal. Direitos humaos e dignidade não são (preceitos) unicamente americanos. É importante também na Argentina, como a história do país mostrou. É muito importante no Brasil. E Igulamente importante no Panamá. Houve um tempo no Panamá, como no meu país, em quando não houve grande respeito pelos direitos humanos. Uma parte muito importante da (nossa) agenda é o conceito da democracia funcionando em favor desses princípios , é (os líderes) ouvirem e compartilhar as experiêcias para continuar a marcha da decência humana e da liberdade.

O presidente Hugo Chávez pediu recentemente ao governo da Argentina para uso em energia na Vezuelena. Em seu ver, isso representaria uma risco para a região?

Há salvaguardas internacionais e é muito importante que todas as nações as respeitem. Também deve haver total tansparência. Eu propus que adoção um conceito internacional para compartilhar urânio altamente enriquecido necessário para a operação de usinas nucleares e a coleta e depósito dos resíduos de forma razoável e responsável. Considerando a oferta de energia de que a Venezuela dispõe, se eu fosse um contribuinte na Venezeula eu ...., mas talvez faça sentido e eu realmente não estudei a proposta e espero que o presidente Kirchner partilhe comigo o conceito, a noção (sobre isso), se ele quiser falamos comigo sa respeito. Estaria curioso. É a primeira vez que estou ouvindo isso. É uma questão interessante.