Título: Na esteira do 'não'
Autor: José Renato Nalini
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/11/2005, Espaço Abeto, p. A2

Expressiva maioria de cidadãos se inclinou pela flexibilização do Estatuto do Desarmamento. O "não" saiu vitorioso no referendo, o que parecia implausível há poucos meses. Todas as leituras que se fazem desse resultado contêm um pouco da verdade que é muito mais complexa e abrangente. Venceram o medo, a desconfiança no sistema de segurança pública, a desilusão com a política e até o protesto contra essa consulta popular, diante de questões consideradas pelo povo mais urgentes.

Algo que agora deve preocupar a lucidez e o bom senso nacional é o que pode vir depois disso. Descoberta a utilização de um instituto da democracia semidireta praticamente esquecido, idêntica estratégia poderia servir para outras indagações polêmicas.

A fórmula do plebiscito - antecedente à formulação de uma política legislativa - propiciaria o ressurgimento de temas recorrentes e até o momento não bem-sucedidos. Já se mencionou a consulta popular para introduzir a prisão perpétua e a pena de morte. Há quem acredite na eficácia de tais sanções para desestimular a criminalidade crescente. O referendo da comercialização das armas evidenciou que as estatísticas podem ser utilizadas com eficiência quando manuseadas por competente marketing. Haverá quem se proponha a comprovar que nos países onde a pena de morte foi adotada houve queda das práticas infracionais. O clima de comoção é bastante propício para a escalada do endurecimento.

Um plebiscito com esse objetivo seria inconstitucional. A Constituição estabeleceu os direitos fundamentais como cláusulas pétreas. São vedadas quaisquer emendas tendentes a excluí-los ou reduzi-los. A nitidez da incompatibilidade da proposta com a Constituição vigente é indiscutível. Mas outras tentativas menos problemáticas podem ganhar corpo.

A redução da maioridade penal é outra medida propugnada por aqueles que não enxergam alternativas para eliminar as causas da delinqüência e querem prender crianças a partir dos 14 anos.

Outra sedutora pergunta seria a respeito do aborto. Teses como a autonomia da vontade da mulher, o seu direito absoluto ao corpo, se aliam a considerações pragmáticas sobre a vida indigna do indesejável ser que foi gerado sem amor. Iniciar-se-ia pelo abortamento do anencéfalo, mais facilmente digerível. E depois se partiria para a mais indiscriminada interrupção da vida. O clima é favorável à invocação dos direitos, palavra tão reiterada em relação a quem a proclama e tão esquecida em face daqueles que não podem expor a sua vontade - os nascituros, nesse caso particular.

Óbvio que qualquer democrata defenda o ideal da manifestação direta da cidadania toda vez em que isso for possível. Parece que as infovias tornam cada vez menos remota a possibilidade de uma consulta instantânea e menos dispendiosa a todos os capazes de exprimir sua vontade mediante a comunicação eletrônica. Já existe tecnologia para isso. Nem se invoque a exclusão digital. O barateamento dos computadores pessoais, a multiplicação dos Centros de Integração da Cidadania, os postos de informática na periferia, tudo é realidade irreversível. Haveria saudável aliança entre o progresso científico e a necessidade de se não despender dinheiro do povo para um erário de insuficiência reiteradamente proclamada. Afinal, o custo do referendo foi um dos argumentos mais lembrados por ambos os lados em contenda.

Acontece que uma sociedade que se vê desprovida de exemplos e de valores corre o risco de se automutilar. Não existe garantia de que a maioria esteja sempre a decidir pelo melhor. Há exemplos históricos de erros fundamentais da opinião pública. Agora mesmo, a humanidade está a se comportar muito mal com a natureza, a única despensa de onde se retira o nutriente essencial à vida. Uma sociedade que não protege o seu meio ambiente parece ter feito opção pelo suicídio. Menos homeopático, mais cruel. O noticiário das últimas semanas é eloqüente manifestação da insensatez da raça humana.

O argumento dos defensores da devastação é sedutor para uma era em que o dinheiro é o único poder cultuado. Justifica-se a destruição com os ganhos no agronegócio e na balança de exportações. E persiste a tendência acelerada de substituir o verde por desertos.

Por esse equívoco o Brasil já está a pagar um preço. Mas continua a errar. Será que alguém ousaria sustentar que a permanência do erro, a sua tolerância e a sua generalização o convertam em acerto?

Foi por desconfiar da capacidade de automático acerto e da infalibilidade das atuais gerações que o constituinte erigiu em sujeito de direito as futuras gerações. É perante estas que a atitude presente deve responder. Somos responsáveis pelo porvir. Pela continuidade da vida humana neste sofrido planeta. Por isso a prudência, a cautela, o princípio da precaução a inspirar toda atuação em termos de ecologia.

Não é diferente a situação da humanidade perante questões tormentosas como o aborto, a eutanásia, a redução da maioridade penal, a prisão perpétua e a pena de morte. A consulta à massa, estimulada por propaganda convincente, levada a impulsos emocionais que impõem banimento à razão, nem sempre conduz ao melhor resultado.

O entusiasmo dos que se consideram vencedores no referendo sobre as armas não deve produzir a urgência em novas consultas, sem que se incentive a sensata discussão, o amadurecimento dos temas, o exame sereno das conseqüências, antes de propugná-las.

Tudo converge na necessidade de uma educação mais consistente. A maturidade de um povo só se atinge depois de gerações formadas com capacidade de raciocinar, treinadas para o exercício da cidadania, conscientes de sua responsabilidade histórica. Referendos, plebiscitos e outros institutos democráticos não podem servir para explicitação de protestos ou para o exercício de um egoísmo irresponsável.