Título: As indiscrições de Bush
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Fonte: O Estado de São Paulo, 04/11/2005, Notas e Informações, p. A3

Os elogios do presidente Bush ao presidente Lula, na entrevista ao Estado, chamando-o de "homem interessante" e "pessoa capaz de enfrentar os problemas mais difíceis da sociedade de forma a fazer de seu respeitado país um lugar melhor", provocaram no Planalto reações paradoxais, contraditórias - e equivocadas. Se não o próprio Lula, ao menos os seus mais próximos reagiram com desconforto às referências favoráveis a ele e ao governo e às suas "intimidades" telefônicas. Já no Itamaraty, de acordo com o noticiário, as palavras de Bush provocaram euforia. No primeiro caso, o constrangimento se explicaria pelo fato de Bush não ser exatamente o chefe de Estado de quem o brasileiro mais gostaria de receber louvações em público, ou que mais apreciaria que ele fizesse praça das supostas afinidades entre ambos. Afinal, Lula tem uma imagem a preservar junto à esquerda nacional e latino-americana, de grande reformador social, imagem cujo lustro ele não se cansa de brunir em suas incessantes viagens pelo território nacional e ao exterior.

Essa é uma tarefa incompatível com "uma relação muito boa, cordial e franca" com o líder do conservadorismo americano. Essa amizade certamente não conviria às aspirações do presidente de emergir, a partir da América Latina, como o líder de uma fronda internacional alternativa ao supremacismo de Washington. O mesmo argumento valeria para a revelação de Bush de que considera "útil, às vezes", telefonar ao presidente Lula para dizer-lhe que tem "uma preocupação com esse ou aquele (governante) e perguntar: o senhor se importaria em dar uma olhada nisso? Pode ser a chance de trabalharmos juntos para resolver um problema". Que dirá disso, em especial, o pretendente à herança de Bolívar, Hugo Chávez?

Já o Itamaraty festejou a entrevista de Bush, como se as suas declarações atestassem o respeito da Casa Branca pela política externa do governo Lula em geral e o reconhecimento da influência da diplomacia brasileira no mundo e no Continente, em particular. Em suma, Bush, teria se mostrado mais realista do que a oposição brasileira diante da diplomacia neoterceiro-mundista, executada, embora não necessariamente conduzida, pelo chanceler Celso Amorim.

As duas reações fazem crer que, por motivos diferentes, uns e outros leram, releram e afinal tresleram, como os críticos literários costumavam ironizar, a entrevista de Bush. O que ele fez, dessa vez bem orientado, foi homenagear menos o lulismo do que o Brasil. Com sutileza surpreendente, considerando de quem se trata, Bush guardou-se de repetir o que Richard Nixon dissera, em 1971, ao presidente Médici em visita a Washington ("para onde se inclinar o Brasil se inclinará a América Latina"), mas o sentido dos seus comentários não foi muito diferente. Além disso, os latino-americanistas do Departamento de Estado e os estudiosos das relações internacionais nos Estados Unidos sabem perfeitamente que, se há um país na região onde não há hipótese de medrar aquele tipo de antiamericanismo, que não nasceu com o governo Bush, é o Brasil.

Diferentemente do caso dos vizinhos mais próximos da América, do outro lado do Rio Grande, que a separa do México, e no Caribe, aqui inexistem razões históricas a partir das quais um governo populista poderia ir além de espicaçar retoricamente a superpotência. Eis por que feneceu com o fim da ditadura a política externa do general Ernesto Geisel, que transformou em confronto aberto a tradição de independência do Itamaraty frente a Washington - no seu mandarinato, o Brasil engajou-se no terceiro-mundismo, denunciou o acordo militar com os EUA e apoiou na ONU a resolução que equiparava o sionismo ao racismo.

Já os afagos do governo Lula a Chávez e a Fidel Castro nunca tiveram autenticidade maior do que a condecoração de "Che" Guevara pelo nada saudoso presidente Jânio Quadros. Foram parte do que Lula considerava a melhor estratégia para se projetar como liderança continental. As "indiscrições" de Bush, que soam aos ouvidos da esquerda como a denúncia de uma infidelidade, não lhe causam maior prejuízo porque aquela liderança já estava perdida, até mesmo dentro do Mercosul.

É por isso que os olhos da Cúpula das Américas, valha o evento o que valer, estarão voltados para George Walker Bush e Hugo Rafael Chávez Frías, não para Luiz Inácio Lula da Silva.