Título: Perigo e barulho, mas ainda uma casa
Autor: Rosa Bastos e Irany Tereza
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/11/2005, Metrópole, p. C1
À meia-noite, os trens dão uma trégua. É quando se ouvem mais os latidos dos cachorros, a gritaria dos gatos, a correria das ratazanas e, eventualmente, algum tiro. Os moradores da favela - catadores de ferro-velho, na maioria - aproveitam esse meio tempo para tirar uma pestana. Mas se levantam antes do amanhecer, falando alto e empurrando os carrinhos. Aí é que ninguém dorme mais. A Favela do Moinho, onde vivem cerca de mil pessoas, fica espremida entre duas linhas. Numa, seguem os trens que vão da Luz a Francisco Morato. Na outra, os que saem da Estação Júlio Prestes para Itapevi. Dois trens em cada sentido, quatro no total, a intervalos de sete minutos no horário de pico. Sara chora, com razão. "A cama treme. Ela agita as mãozinhas, assustada, tem pesadelos", conta a avó, Eunice Maria dos Santos. "Mas a morada é essa mesmo. Não tem saída."
Depois, o intervalo entre os trens é de 15 minutos. Das 17 às 20 horas, outro pico. O barulho não é nada diante do perigo. Para chegar em casa, é preciso atravessar a linha. E muitos o fazem com displicência, driblando o trem como driblam carros. Caminham nos dormentes, pulam para o outro trilho quando o maquinista apita.
De janeiro a outubro deste ano, a travessia irregular nas vias da CPTM resultou em 44 mortos por atropelamento e 59 feridos. Segundo a empresa, o problema vem da imprudência das pessoas que insistem em utilizar a via férrea como passagem, quebrando os muros de vedação de faixa para chegar ao outro lado mais depressa.
Em São Paulo há 13 áreas consideradas de maior risco operacional por causa da concentração de favelas ao longo das linhas. Dessas áreas invadidas, três ficam em terrenos da CPTM. Uma delas entre Jurubatuba e Grajaú, em processo de remoção das famílias. Outros dois pontos críticos são a Favela General Miguel Costa, em Carapicuíba, e a Sagrado Coração, em Jandira. Nenhuma delas supera a Favela do Moinho. "É a campeã", diz Sérgio de Carvalho Júnior, gerente de Atendimento ao Usuário.
Os primeiros barracos foram erguidos há 12 anos sob o Viaduto Rudge. Não faz muito tempo, eram uns 200. Da noite para o dia esse número dobrou. E os barracos são cada vez mais precários, de compensado, sem água encanada e com luz de gambiarra. Chão úmido, vento penetrando pelas frestas, falta de saneamento. Resultado: muitos casos de pneunomia e alergias, principalmente entre as crianças - cerca de 400.
Na porta de uma das poucas casas de alvenaria, na rua principal, há uma placa: "Não sinta inveja de mim. Apenas trabalho." É um toque. Em vários pontos, a Favela do Moinho parece um lixão. Os catadores trazem o material que recolhem e colocam na porta de casa. Separam o que interessa e o resto fica ali mesmo ou na entrada da favela. "A Prefeitura fica semanas sem recolher", conta Roberto Andrade da Silva, de 61 anos, dono de um barraco de dois andares. "É duro suportar os ratos e essa barulheira. Mas se a gente fez, tem de agüentar. Quem pode pagar aluguel em São Paulo?"
Silva morou 24 anos em favelas no Jacarezinho e Rocha Miranda, no Rio. "O trem passava do lado, como aqui. É sina." Num terreno baldio, junto do lixo que não param de jogar, plantou girassóis. Dentro de casa, procura manter tudo limpo. "Se cada um fizesse sua parte, seria menos ruim."
VOLUNTÁRIOS
É o que dizem e repetem os missionários da Associação Aliança de Misericórdia, da Arquidiocese de São Paulo, que chegaram ali há dois anos e meio. No começo iam só nos fins de semana. Há sete meses, um grupo de cinco mulheres e dois homens, numa experiência "mais radical", mudou-se para um barraco de madeira, igual aos outros. "Decidimos viver como eles, menos no que é errado", conta José Francisco Alves, de 27 anos. Hoje, a favela conta com creche, igreja e a ajuda desse pessoal.
"Estranhei muito as brigas, a gritaria, o caldeirão que é isso aqui", diz o missionário Jefferson Aparecido dos Santos, de 29. "É uma luta diária, um desafio. Mas vou ficar."
Já o alagoano Ivanildo Gomes Primo só pensa em sair. "Quando o bicho buzina, fico azoado. Só não fui ainda ao Gugu pedir passagem para voltar porque não sei como chegar ao SBT."