Título: Perplexidades sobre os rumos da Europa
Autor: Gilberto Dupas
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/11/2005, Espaço Aberto, p. A2

A União Européia (UE) está perplexa e dividida. A primeira fonte de tensão é o impasse da nova Constituição: rejeitada na França e na Holanda, há consenso de que também o teria sido na Alemanha se tivesse havido votação popular. Trata-se de grave discordância quanto ao modelo federativo e à perda das autonomias nacionais. A segunda é o conflito entre os padrões neoliberais, que exigem da velha Europa reformas trabalhistas e fiscais profundas; para esses padrões, sem elas a UE não tem futuro no mercado global. As eleições alemãs recentes dramatizaram esse conflito, que também está claramente presente na França, abrangendo, portanto, o núcleo duro da UE.

As demais áreas de tensão são de natureza geopolítica e migratória. A intensa polêmica sobre a entrada da Turquia no bloco mergulha nas raízes da questão da tolerância e de como tratar islamismo e terrorismo. A maioria dos que defendem a admissão da Turquia pensa na Europa como a cultura que ainda é capaz de construir pontes e evitar a guerra de civilizações. Os que são contrários se perguntam para que serve a UE chegar até a Ásia Menor, tendo como vizinha uma das regiões mais tensas do mundo, que inclui Armênia, Geórgia, Irã, Iraque e Síria. O tema é altamente controverso e cheio de paixão, a ponto de inverter os pólos políticos na Alemanha. Assim, o Partido Democrata-Cristão (CDU) da nova chanceler Angela Merkel - defensor de uma aproximação com os EUA - é contra a entrada da Turquia, defendida, por sua vez, pelo governo norte-americano. E o Partido Social-Democrata (SPD) de Schroeder, que vive a alfinetar os EUA, nesse caso se alinha à idéia da admissão dos turcos.

Em seguida, vem o dilema de como tratar a franja russa que sobrou dos países do Leste: Ucrânia, Bielo-Rússia, Letônia, Lituânia e Estônia. Mantê-los à distância significa consolidar a influência da Rússia sobre eles, o que causa temor a vários dos novos membros da UE, em especial à Polônia, para quem os russos ainda são o grande perigo, em razão de seu passado de dominação. Tentar atrair esses pequenos países de modo a funcionarem como um buffer contra a Rússia custaria muito caro e exigiria uma nova expansão.

Finalmente, surge a nova e assustadora frente imigratória africana, ameaçando despejar grande número de miseráveis subsaarianos nas costa ensolaradas da Espanha, rumo aos países do continente, obrigando a Comissão Européia a propor uma reunião de cúpula de emergência com Argélia e Marrocos para tentar conter o fluxo de africanos. O quadro de confusão se completa com os conflitos de rua de Paris nas últimas semanas, que, à semelhança do Katrina de Bush, expõem o lado escuro da pobreza e da clandestinidade francesa aos olhos do mundo.

Quanto ao resultado das eleições alemãs, ele é um grito de alerta sobre as dificuldades de conciliar reformas econômicas com as proteções sociais construídas na Europa do pós-Grandes Guerras, quando se imaginou ser possível domar o lado selvagem do capitalismo e forjar uma sociedade dinâmica que pudesse proteger os mais frágeis e evitar a exclusão. A convicção das elites econômicas de que sem uma radical revisão dos padrões de proteção social a Alemanha - mas também a França - não tem espaço para crescer no capitalismo global parece encerrar de vez aquela fantasia. A necessidade de realizar uma grande coalizão na Alemanha após eleições - que terminaram rachadas entre as teses reformistas do CDU e os valores sociais do SPD - são sintomas da confusão que paralisará a Europa por alguns anos. Angela Merkel impôs-se a duras penas como chanceler, obrigando a uma coalizão que nada tem que ver com seus planos originais. O melhor cenário é que o governo de conciliação ande devagar; o pior é a paralisia, que pode exigir inclusive um novo chanceler.

O fato é que, gostemos ou não, os EUA seguirão como potência hegemônica por vários anos. O crescimento da Europa depende muito de suas exportações para os norte-americanos, e ela reza para que o gigantesco déficit dos EUA seja sustentável. O projeto-poder europeu, afrontado com as tensões recentes, está temporariamente engavetado. O que se tenta é consolidar o pacto comercial e a moeda única, evitando recuos. Mas, com isso, a aliança transatlântica - resíduo exótico da guerra fria -, que por intermédio da Otan mantém os EUA como país-chave da segurança européia, continua sendo a realidade de defesa da UE. A pergunta óbvia é: defesa contra quem? Qual é o inimigo? Seria o terrorismo internacional?

Os líderes do CDU pensam que a Alemanha só poderá recuperar poder numa aliança tática com os EUA, rachando a primazia inglesa de representar os interesses norte-americanos na Europa. Para Angela Merkel, a Alemanha tem de se fazer atraente para os EUA. Seu caminho seria pôr a casa em ordem com um choque liberal, voltando a crescer; e abster-se de criticar os EUA em assuntos vitais. Entre os vários problemas que essa estratégia evoca, o mais importante é a opinião pública: pesquisa recente mostra que 75% da população alemã é contra uma aproximação excessiva dos EUA.

Aí está, pois, a velha Europa sentindo-se ameaçada por dentro e por fora: pelas reformas econômicas, pela cultura e pelo terrorismo islâmicos e pelo êxodo de imigrantes miseráveis. Todas as três ameaças perturbam os valores e a unidade européia. Há certo consenso de que esses novos impasses e perplexidades mergulham o projeto da UE numa fase de reavaliação que pode durar uns dez anos.

Que modelo de Europa poderá emergir ao fim da crise? Essa é uma resposta que interessa ao mundo todo. Pelo menos até lá, os EUA continuarão a reinar, impávidos.